segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Novembro de 2007

Embora hoje esteja chovendo, muito, e o vento leste traga um pouco de frio, o verão chegou a Cumuruxatiba,... junto, e por causa de, um feriadão. E verão, aqui, representa uma profunda transformação no ritmo de vida das pessoas e, portanto, alteração na dinâmica da própria vila: todos, quase todos, aumentam a produção em suas atividades mais comuns – pescadores pescam mais, ceramistas queimam mais, pousadeiros hospedam mais, comerciantes vendem mais, artesãos criam mais, cozinheiros e cozinheiras cozinham mais -. Além disto, muitos acumulam atividades – pescadores tornam-se caseiros em casas de veranistas, estudantes trabalham em pousadas, artesãos fazem papel de garçons em restaurantes...

Já mencionamos este fenômeno no último Diário; porém, no mês de novembro, sua influência foi sentida profundamente no Projeto de Gente. Nossa equipe, voluntários que desejavam e podiam vir 3-4 vezes na semana ao Projeto, passaram a estar com as crianças 1-2 vezes, por conta da necessidade de trabalharem em atividades geradoras de recursos financeiros que lhes assegurasse, inclusive, o próximo ano. Com muita freqüência apenas uma pessoa estava disponível para cuidar de 15-17 crianças.

Isto contribuiu para o esgarçamento do cuidado; isto é, este cuidado tornou-se mais superficial. Exatamente neste momento, por conta da confiança conquistada ao longo dos 3 meses de trabalho, situações pessoais de algumas crianças foram ficando mais claras e mesmo trazidas à tona por elas mesmas.

A equação desequilibrou: diminuição do número de pessoas que pudessem dar campo ao aumento de manifestações importantes e delicadas das crianças.

Como quase sempre acontece, este movimento não foi imediatamente percebido. Na verdade, os sintomas deste desequilíbrio é que foram, aos poucos, chamando a atenção: um certo nervosismo no ar, desatenção a regras já combinadas, irritações, confusão entre liberdade e poder fazer qualquer coisa, etc.

O educador, freqüentemente, não podia estar perto de uma situação na qual ele podia atuar como um mediador cuidadoso e elucidativo e, não podendo, esta circunstância significava, então, um afrouxamento na prática da possibilidade de se encontrar uma re-novada forma de, por exemplo, resolver um conflito, de re-organizar uma estrutura de consciência velha e pouco construtiva. De um “lembrar, cuidar” tranqüilo, terno quanto ao cumprimento de uma combinação, passava-se a uma “chamada de atenção”, eventualmente áspera, cansada. O educador passava a exercer, facilmente, uma função policial que, naturalmente, era sentida como repressora da liberdade. A reação se organizava: ou a criança se afastava quieta, mais triste que zangada, magoada – atitude introspectiva - ou contestava, mais zangada que triste, magoada – atitude extrovertida. Ambas esquecidas de que liberdade inclui o outro.

De modo que, o Projeto vive um delicado – belo, trabalhoso e esperado – momento. Por um lado, algumas crianças se sentem confiantes, vale dizer, livres, para manifestar suas preocupações, inquietações, dúvidas. “(Tendo como base) o amor recebido e o amor é o chão da liberdade...”, como ensina Hélio Pellegrino, estas crianças conseguiram ultrapassar velhas barreiras, diminuir defesas e revelaram um pedacinho de seus escondidos corações, deixaram que lêssemos, pegando no livro, uma linha de suas sensibilidades mais profundas. Porém, e por outro lado, a diminuição no número de educadores dificultou a vivência destas possibilidades.

Resultado: das crianças podíamos ouvir o questionamento: “Ôch (baianês!), cadê a liberdade?”, “A gente não pode fazer o que quer?”, “Que chato! Toda hora Roda extraordinária para combinar regras!”, “Toda hora escabreando (escabrear: dar bronca)!”. De alguns educadores: “Chega! Assim não dá!”, “Vocês não respeitam as combinações!”, Também não vou respeitar: vou p’ra casa!”, “Não ganho nada p’ra estar aqui!”. Reatividade de ambas as partes.

De alguns educadores uma pergunta aparecia, com maior ou menor clareza: “Eles (as crianças) estão maduros para a liberdade?”. “As crianças” está escrito entre parêntesis porque, de certa forma, as crianças repetiam, ao seu jeito, a mesma pergunta colocando “os adultos” dentro do parêntesis.

Ora, a liberdade é condição pré-existente à maturidade. Liberdade é – deveria ser – condição natural, sem adjetivos – nem bela nem perfeita, nem pouca nem muita -, apenas deveria existir e ponto. Muita liberdade é, veremos, outra coisa, não liberdade.

Porém, parece que os adultos – a sociedade – se dão o direito de decidir se e quando suas crianças estão ou não maduras para viver a liberdade. Confundem núcleo e citoplasma, essência e circunstância. Freq6entemente, inclusive, atrelam a liberdade a uma simples questão financeira: “Enquanto comer às minhas custas, viver debaixo do meu teto (esquecidos que foram eles que convidaram seus filhos a esta situação) estão sob as minhas leis!”

A maturidade acontece, construída e renovada, na prática da livre vivência com o outro, no encontro de liberdades. Maturidade acontece quando se percebe que sem o outro não há liberdade. Acontece quando se percebe que quando apenas se faz o que se quer colaboramos, ao final, para o afastamento (agressivo ou melancólico) do outro. Liberdade sem o outro é solidão! Maturidade acontece quando livres manifestações podem ocorrer e eventuais – naturais – conflitos são vividos sem violência organizando uma vivência conjunta, uma construtiva convivência.

Mas, porque a confusão acontece? Quem sabe uma possível raiz esteja no medo de ser – ele mesmo, adulto – livre. Outra possibilidade: o medo de viver o medo do que a liberdade pode significar na vida de suas crianças na sociedade em que vivemos, que organizamos (uma sociedade que tantas vezes criticamos mas seguimos mantendo, assustados com a reação dela a uma atitude transformadora de nossa parte). Talvez a comunhão dos dois temores.

Negando viver, simplesmente viver, o medo de ser livre, o medo da liberdade, o medo de era quem somos, negando o fluxo que dita nossa condição essencial, o fluxo que pede, depois exige, a liberdade de ser quem cada um é, vamos, paulatinamente, construindo uma ditatorial e destrutiva forma de vida. Destruindo a nós mesmos, colaboramos na destruição do outro – de todo outro (basta olhar para nosso já bastante destruído planeta), justo porque a liberdade de ser inclui a liberdade do outro.

Talvez possamos aprender algo conhecendo a história de Dédalo e Ícaro: Dédalo, o mítico arquiteto grego, após desviar-se de si mesmo – matou, por inveja, seu mestre – foi acolhido em Creta. Aí ele constrói o Labirinto – símbolo do mergulho em seu inconsciente –, um lugar onde somente ele encontrava o caminho de volta. Adquiriu, assim, sabedoria, auto-conhecimento. Por ter ajudado a mulher e a filha do Rei de Creta a viverem legítimos desejos, embora indesejados pelo rei, foi aprisionado, junto com seu filho Ícaro, no Labirinto. Naturalmente. Dédalo encontrou o caminho de saída e fabricou dois pares de asas as quais prendeu, com cera, aos ombros para que ele e seu filho pudessem fugir da Ilha de Creta. Recomendou, muitas vezes recomendou, a Ícaro que não voasse nem muito alto, pois o sol derreteria a cera, nem baixo demais porque a umidade do mar tornaria as penas muito pesadas. Apesar de tudo, dos conselhos paternos, Ícaro não aceitou seu lugar, “seu centro, entre as ondas do mar e o sol” e voou, desconectado de si mesmo, alto demais. Ao chegar perto do sol a cera derreteu-se e as penas se soltaram. Ícaro caiu no mar e afogou-se. Seu pai nada pôde fazer, a não ser viver a dor e a tristeza da perda.

“Se (...) as asas são o símbolo (...) da liberdade é preciso ter em mente que assas não se colocam apenas, mas se adquirem ao preço de longa e não raro perigosa educação (...)”. O erro de Ícaro foi ultrapassar um limite, descuidar-se de si mesmo, não aceitar-se. A história do menino grego, naturalmente, não fala de um limite físico já que o ser humano não tem asas. Ela nos fala de uma escolha, uma escolha que depende de conhecimento, auto-conhecimento. O auto-conhecimento que Dédalo possuía, mas não podia transferir para seu filho pura e simplesmente; havia de existir a práxis do menino. (Vale dizer que as aspas referem-se às palavras do Prof. Junito Brandão, e, Mitologia Grega)

Aí está a motivação de um educador – de um adulto – que cuida de uma criança: trabalhar para que ela possa conhecer a si mesma, conhecer a real possibilidade – o verdadeiro poder – da liberdade, aquela que inclui ele próprio e o outro em harmônica convivência. Ícaro, o mar, o sol.

Em novembro de 2007, todos nós do Projeto de Gente, vivemos, dia a dia, a simples e trabalhosa máxima: a vida se organiza para se desorganizar e re-organizar-se... para desorganizar-se e...

Um importante, delicado e triste, momento aconteceu quando duas crianças reagiram agressivamente ao conflito de se sentirem divididos entre o campo amoroso do Projeto e outro, caseiro, nada amoroso – violento mesmo – ou ambíguo, mas que lhes deu suporte para estarem vivos até hoje. Reagiram agredindo as combinações – como disse uma criança: “Parece que eles não querem mais estar no Projeto!” -, agredindo outras crianças, adultos e a própria casa – rabiscaram as paredes reiteradamente, jogaram pedras, um dia. Na Roda, uma criança propôs que fossem, então, desligados. Um adulto ponderou que esta decisão era tão séria que seria bom que se conversasse maiscom eles para saber o que estava realmente acontecendo, porque eles não estavam, mais como no início das atividades do trabalho. Esta proposta foi vencedora por estreita margem. Entretanto, 3 dias depois os dois meninos – 7,8 anos – voltaram a agir com redobrada agressividade e, naquele dia, a Roda decidiu pelo desligamento. Ficou claro, para a maioria das crianças, que era impossível a convivência mesmo que – alguns compreenderam – o desligamento não ajudasse realmente a resolver a questão que motivava a reação dos meninos. Um dos educadores tem mantido contato, fora do Projeto, com os dois. Naturalmente que o retorno não está impedido e isto também ficou claro para todos.

Também em novembro o Projeto de Gente recebeu uma generosa oferta: um grupo de música – a FÁBRICA DA ARTE – ofereceu um show em prol de nosso trabalho. Este espetáculo acontecerá dia 09 de janeiro de 2008 e tem 3 propósitos principais: 1) divulgação do Projeto de Gente; 2) ampliar a possibilidade de encontrarmos patrocínio – necessidade prioritária para o pagamento de salários para a equipe – e 3) arrecadar recursos financeiros imediatos para necessidades imediatas – conserto da caixa d’água, confecção de mesas, etc.

Foi decidido que nosso trabalho será apresentado ao público através de todos os participantes do dia a dia do Projeto. A idéia é realizar uma primeira parte com uma Roda de Capoeira que se transforma numa roda de samba, de hip-hop e, finalmente, forró. Depois, um esquete de teatro que mostrará os conceitos principais que norteiam o trabalho. Um clip de fotos e música e, então a Fábrica da Arte se apresentará. As crianças estão produzindo objetos – cerâmicas, pinturas, desenhos, para serem vendidos. Além disto, conseguimos a doação de 200 botons, 100 camisetas que também reverterão em recursos financeiros. Neste dia o Projeto de Gente receberá o que for vendido no bar da Barraca Zona Livre, local do apresentação.

Uma decisão importante foi o encerramento das atividades cotidianas e integrais do Projeto por conta da, já dita, diminuição de pessoal da equipe e a necessidade de ensaios para o dia 09, além de inúmeros outros detalhes a serem articulados para a organização e produção do espetáculo.

Deste modo, dezembro chega com muito aprendizado e muitas perspectivas.

Beijos.

Outubro de 2007

Há 19 anos, durante uma reunião de pais e mestres em uma escola do Rio de Janeiro, um pai colocou as mãos em concha e perguntou onde estava a fronteira entre cuidar e, fechando lentamente as mãos, oprimir, obrigar.

Quando este pai usou a palavra “fronteira” estava, talvez sem consciência, tocando em um dos pontos básicos do que se convencionou chamar: educação. Um tema conhecido também por outra denominação: limite.

Limite. Uma palavra que, aparentemente, não se desgasta com o uso. Um conceito do qual muito se fala, muito se ouve – “É preciso que se tenham certos limites!”, “Sem limite a liberdade vira libertinagem!”, “Viu no que deu? Os pais nunca deram limites a este menino!”.

Quase sempre – e os exemplos, de certo modo, mostram – limite traz a idéia de cerceamento, restrição, repressão. Entretanto, também quase todos concordam, em teoria, que limites podem – mesmo devem – ser ultrapassados.

Durante a fase inicial da vida, este último aspecto parece ser empanado pelo anterior – é a fase do “adestramento”, da criança bem educada. Porém, em outra fase, na sociedade competitiva em que vivemos, os ousados, os que desafiam os limites, são os mais admirados. E aí parece haver uma inversão quanto à expectativa em relação ao comportamento frente ao limite: de aceitação para superação.

Pelo menos um motivo pode ser vislumbrado para que assim seja. No início, talvez se organize uma estrutura defensiva reativa ao famoso, e muito compreensível, “medo de crescer”. E crescer, fica aqui entendido, mais que tudo, como o medo de se reconhecer como indivíduo único e capaz de manifestar tal singularidade com todos os riscos que este ato acarreta. Medo porque, afinal, se manifesto exatamente o que sinto-penso muitos podem não gostar e se afastar de mim. E o que fazer se uma destas pessoas for muito, muito importante – vital mesmo – para mim? Talvez, neste caso, seja melhor “respeitar” um certo limite. Como não sabemos qual limite exatamente – teríamos que experimentar, ousar – damos, então, uma margem de segurança e, sobre esta margem, outra para dar mais segurança... e outra... e outra... A defesa está construída e, freqüentemente, tão bem construída que o que quer que a tenha motivado fica completamente esquecido, soterrado sob toneladas de “margens de segurança”. E o esquecido é, justamente, o que não podemos jamais esquecer: o ser que, de fato, somos.

Numa segunda fase, muitos aprofundam este esquecimento através de uma atitude ousada, porém refletindo o que se espera de cada um – não quem é realmente cada um. Desta forma tenta-se garantir “proteção”, “acolhimento”, aceitação. Entretanto, o preço é ser quem não somos – o mesmo, e alto, preço pago na primeira situação.

Um mote inspira o Projeto de Gente: descoberta, desenvolvimento e integração.

Integrar-se é construir fronteiras. Fronteiras que exigem auto-conhecimento, livre manifestação e reconhecimento da manifestação do outro. Portanto, uma mesa de negociações deve ser organizada, bela e natural, entre dois livres manifestantes.

Bela, se livres e respeitados; catastrófica, se dissimulados por intenções ocultas (vale dizer, defensivas) e interesseiras (não a partir do “entre esses”: o interesse), mesmo que, nesta altura, completamente despercebidas pelos negociadores.

Entretanto, a livre manifestação não implica em perda do direito à intimidade – muito ao contrário –; isto é, não temos que subir em um banco na praça pública e nos expor. No mundo que construímos isto seria um descuido. Há que saber fazê-lo; aliás, a superexposição é, mais que tudo, uma defesa, aparentemente contraditória, contra o medo de ser: atrás das luzes esconde-se o verdadeiro ser. Pessoas públicas nos mostram isto com clareza quando a dor escondida eclode das profundezas das luzes, freqüentemente nas páginas sensacionalistas ou policiais dos jornais e revistas.

Talvez tenhamos que trabalhar para construir uma alternativa onde, desde cedo, não precisemos temer não existir se formos quem de fato somos.

Mas, vamos voltar à reunião de 19 anos atrás e lembrar algumas perguntas que surgiram naquela ocasião: será que o mesmo cuidado serve para toda e qualquer criança? Será que o cuidado necessário para uma significa opressão para outra? O cuidar para um pode ser um “sufoco” para outro? Descuido para este? As leis do bem cuidar, então, não podem ser generalizadas? Como criar um bom campo de cuidados se as crianças são tantas, tão variadas, e os educadores poucos? Será necessário um educador para cada criança? Um certo educador para uma certa criança?

Bem, talvez o educador tenha que estar certo de que cada criança é uma, nenhuma certa ou errada e ele é um, nem sempre certo,... todos sensíveis.

Quando uma criança incomoda, molesta especialmente, um educador, ele deve, quem sabe: (1) respirar fundo três vezes; (2) observar em que ponto sensível dela, a criança, ele está tocando e (3) observar em que ponto sensível dele ela está tocando.

Muito bonito tudo isto – alguém vai dizer –, mas, quero ver fazer o tal 1, 2, 3 numa tarde de sol baiano (ou de chuva torrencial que obriga a todos ficar dentro de casa) com 17, 18, 20 crianças de idades diversas, desejos diversos, energias diversas enchendo o espaço, ultrapassando o espaço! Respirar fundo 3 vezes? Como, se estou é sem fôlego?! Observar? Como, se mal compreendo o que está se passando?

Claro que o 1, 2, 3 é uma maneira brincalhona... e chata... de falar sobre uma dinâmica que pode, e deve, ser realizada com simples naturalidade desde que sejamos corajosos e generosos. Generosos para ver nos olhos, nos gestos e atitudes da criança, sem invasividade, sem desrespeito, o que eles nos revelam (não o que, preconceituosos, pensamos que lá existe). Corajosos para nos ver, espelhados, nos olhos, gestos e atitudes da criança.

Se quisermos ser um campo para o desenvolvimento destes meninos e meninas temos que estar seguros de que um campo não interfere na semente. Simplesmente se oferece, oferece o que tem, oferece quem é. O campo não transforma a semente de manga em semente de caju. Não tem, felizmente, este poder! Apenas a acolhe e oferece seus constituintes, aceita o outro e a si mesmo tal como cada um é.

Se desejarmos servir de campo para que estas crianças se organizem como de fato são, temos que nos reconhecer como de fato somos. Se desejarmos oferecer campo para que elas possam reconhecer sua autoridade mais legítima, pessoal e singular temos que, continuamente, buscar contato com nossa própria autoridade interna. Não a autoridade a que estamos (mal)acostumados – aquela que apenas ordena, faz cumprir as leis e pune os que não as seguem – e sim aquela que autoriza, alimenta nossa autonomia, dá legitimidade à nossa conduta, aos nossos desejos. A autoridade de quem conhece, sabe a simples lei que rege a existência humana: apenas serei feliz se for quem sou.

Entretanto, os seres humanos são exatamente os únicos que conhecemos que conseguem “dobrar” seu fluxo vital natural de tal forma que construímos, justo, o que não desejamos. Fazemos isto movidos por interesses secundários, realizando estranhas escolhas que nos levam a trilhar caminhos que, ao final, se mostram mais difíceis e trabalhosos do que aqueles dos quais fugimos, assustados – o medo de ser –, quanto a nossa capacidade de viajar por eles.

Em outubro de 2007, nós, do Projeto de Gente, aprendemos um pouco mais sobre esta construção. O mês começou em clima de festa, aniversários, visitas de pessoas muito queridas ligadas ao pessoal do Projeto – Letícia, mulher do Daniel; Cristina, Letícia e Lucas, da família do Alexandre, vieram trazendo alegria e participação –, Sabine e Felix, jovens alemães da ONG – The Travelling School of Life, também estiveram conosco e, embora o objetivo de seu trabalho não seja, no momento, a prioridade do Projeto de Gente (você pode conhecer o TSOLIFE pela internet: www.tsolife.org) foi muito gratificante a troca de experiências e a inclusão do Projeto em uma rede de contato de pessoas interessadas em pensar e construir educação de um modo democrático e progressista.

Entretanto, ao longo do mês, fomos notando uma diminuição no número de crianças participantes; esvaziamento da Roda; aumento na freqüência e profundidade de conflitos; alguns incômodos em relação a certas atitudes – freqüência irregular, um entra e sai das dependências do Projeto (quando nos dávamos conta uma criança tinha simplesmente ido embora), combinações não respeitadas. Além disto, como já referido nos último diário, a equipe se ressentiu da diminuição do número de trabalhadores no dia a dia.

Os educadores foram trazendo elementos segundo suas percepções pessoais e que se complementavam com as de outros: este observando com mais objetividade o movimento das crianças, aquele atento a uma dinâmica mais psicológica, outro a uma questão social. Algumas crianças também começaram a se referir ao fato de que a Roda tinha menos gente; que alguns vinham apenas para o lanche e não para conversar; que fulano e beltrano estavam vindo pouco ao Projeto e que haviam outras crianças interessadas em se inscrever. A partir destas observações as Rodas ganharam consistência: mais respeito ao horário – passamos a nos reunir na hora combinada, não importando quantos estivessem presentes e não mais buscando as crianças e lembrando sobre o horário –; maior aprofundamento na qualidade das discussões – por exemplo, combinações sobre os critérios para se determinar que uma criança estava, de fato, ligada ao Projeto dado que a regra vigente não obrigava uma determinada freqüência de comparecimento (foi discutido que a qualidade da presença era mais importante que a quantidade de dias que a pessoa vem). Outra discussão foi sobre a entrada de novas crianças interessadas e a dificuldade de atenção e cuidado que o Projeto poderia oferecer com a pequena equipe de trabalho (resolveu-se que uma boa conversa deve acontecer com as crianças que estão comparecendo irregularmente para que se tenha uma melhor idéia sobre suas motivações). Mais uma questão: qual a real importância da Roda, dado que, muitas vezes, os temas não interessavam a todos. Foi decidido que a Roda não é obrigatória, na verdade reafirmado, mas a participação deve ser efetiva, isto é, quem está, está – “A Roda é o coração do Projeto porque é aqui que todo mundo escuta melhor o que cada um sente e pensa.” Chegou a ser incluída na proposta que apenas lancha quem participa da Roda!

Dois pontos estão exigindo muita atenção: (1) a questão financeira do Projeto. A cada dia fica mais clara a necessidade de pessoal dedicado e compromissado em todos os sentidos e isto inclui, naturalmente, remuneração. (2) O verão. Em Cumuru, o verão é um momento único e extraordinário. A maioria dos habitantes se envolve em alguma atividade ligada ao turismo como uma maneira de aumentar seus rendimentos. Como os trabalhadores do Projeto são, basicamente, moradores voluntários temos que lidar com este problema que acarretará numa diminuição ainda mais clara de adultos no Projeto. O que fazer? Fechar durante o verão? Contudo, este é um tempo em que as crianças poderiam, mais que nunca, participar. Outra hipótese: abrir apenas 2 ou 3 vezes na semana.

Decisão do momento: vamos conversar a respeito!

Até novembro!

Setembro de 2007

Prosseguindo na prática destes, segundo o João, peculiares relatórios nos quais se juntam temas sérios e outros menos sérios – mas que, ao fim, não sabemos ao certo qual é qual –, aí está o 4o comunicado sobre o que aconteceu no dia a dia do Projeto de Gente durante o mês de setembro, em Cumuruxatiba.

Desde um tempo muito remoto a humanidade percebeu a existência de quatro elementos primordiais na natureza: a terra, o ar, a água e o fogo. Esta observação está revelada em incontáveis mitos e ritos de diversas culturas sem qualquer possibilidade de contato imediato.

Faz também bastante tempo que Mestre Jung ensinou que temos algumas ferramentas que nos ajudam a conhecer o mundo e a nos reconhecer nele. As sensações do corpo, o pensamento, os sentimentos e a intuição são alguns destes instrumentos.

Uma poética, porém precisa, analogia pode ser feita entre estas funções humanas e os quatro elementos: a terra representa as sensações corporais; o ar, o mundo do devaneio, dos pensamentos; a água que – efetiva e afetivamente – recobre nossa pele está ligada aos sentimentos e o fogo, símbolo, tantas vezes divinizado, do mistério, do transcendente, da intuição.

Seguindo as pegadas de Jung podemos dizer que o ser humano primeiro percebe, com os sentidos ou intuição, que algo existe. A seguir, o bicho humano pensa, reflete, faz perguntas, pesquisa sobre o que é este algo. E então sente, tem sentimentos a respeito deste algo que, neste momento, ganha uma qualidade, uma dimensão mais ampla. Não a qualidade singela dos animais irracionais que dita uma atitude pronta e sem dúvidas, e sim uma qualidade que interage com outras ganhando, portanto, nuances delicadas e, freqüentemente, muito difíceis de lidar. E cada ser humano tem, em sua bagagem de viagem, uma singular distribuição destes elementos; isto é, uns têm mais ar que terra, outros mais água que fogo; outros mais este ou aquele; e até os que têm um mesmo perfil, vamos dizer, qualitativo, dificilmente serão, quantitativamente, iguais. Assim, somos iguais e diferentes ao mesmo tempo.

“Na dura caminhada pela noite escura”, usamos nossos sentidos e intuições, nossos pensamentos, reflexões e, finalmente, nossos sentimentos para construir uma ação, a ação humana. Portanto, é muito importante que conheçamos o conteúdo deste nosso baú para melhor construir o gesto humano, o pessoal gesto.

SENSAÇÕES CORPORAIS/INTUIÇÕES PENSAMENTOS SENTIMENTOS AÇÃO HUMANA

Se – importante condicional – utilizamos, sem dissimulações, sem segundas intenções, íntegros, as simples capacidades de nossas ferramentas o gesto construído refletirá quem, de fato, cada um é essencialmente, o que podemos, o que temos a oferecer ao mundo, ao Outro. Estaremos também revelando como nosso corpo sente, nossa cabeça pensa e, susto maior, nosso coração sente.

Assim, como uma espécie de fruta que, espontânea e amorosamente, oferece seu sabor único, próprio, a humanidade – cada um de nós – pode oferecer suas qualidades, organizadas de modo único em cada um dos homens e mulheres, meninos e meninas. Porém, apenas os humanos podem negar esta possibilidade – a possibilidade natural – espontânea, amorosa e ofertar outro sabor, assustado, programado, dissimulado, pouco amoroso. Escolhendo a negação de nós mesmos fomos nos afastando da natureza, “dobrando” nossa natureza, esquecendo a amorosidade, o amor-próprio, a própria oferta de cada um à vida;... construindo a destruição, a doença.

O pessoal do Projeto de Gente, um dia, viu, ouviu; ou melhor, viu a invisibilidade da criança, ouviu seu grito surdo. Viu, refletiu sobre como estas crianças não tinham campo fértil para descobrirem seus conteúdos. Refletiu sobre o que viu e ouviu e um longo processo, ainda e sempre incompleto, teve início. Um processo vivido por cada um – pelo Projeto – que avançou através de anos de sensações, reflexões que, muitas vezes, assustavam quando apontavam para lugares do mundo esquecido, laboriosamente esquecido, por detrás de regras, quase sempre muito bem fundamentadas, explicadíssimas, porém, desconectadas da essência de nós mesmos.

Pois bem, em setembro, o Projeto de Gente está tocando no... amor. Estamos (re)aprendendo a amar, (re)iniciando esta etapa da caminhada.

Reaprendendo no dia a dia, costumeiramente avassalador, no qual a água falta; onde “não sobra dinheiro não”; um menino briga com outro ou outra – e, pelo menos uma vez, adultos discutiram entre si ante o olhar, assustado e divertido, de algumas crianças –, outra cai da árvore e, justo esta, faz drama enquanto outros gritam dizendo que não foi nenhum deles que empurrou (ninguém estava perguntando!) e a que caiu diz que foi um deles que, por sua vez, jura de pés juntos que não (na verdade nem tão de pés juntos assim porque senão ele próprio vai cair da árvore onde ainda está encarapitado... E só ele está na árvore!); tem também o dia em que a Roda gira numa velocidade estonteante e, exatamente neste dia, quem ia comprar o biscoito esqueceu-se de fazê-lo e então, todas as combinações parecem ser esquecidas. A lista poderia prosseguir, mas vamos passar direto para um certo item: a drástica diminuição do número de colaboradores. Naturalmente que era esperada uma modificação no quadro, pois é comum que o entusiasmo inicial se arrefeça por conta das mais diversas motivações – alguma claras, outras mais ou menos conscientes embora compreensíveis, principalmente se nos lembrarmos dos primeiros parágrafos deste “estranho relatório”. Felizmente todos os que estão juntos são pessoas com sensibilidades, histórias e temperamentos diversos, mas de olhar terno e coração amoroso.

Entretanto, o resultado deste movimento é que, exatamente, nas situações emergenciais em que um educador precisa estar com sua atenção plena voltada para esta tal circunstância nos vemos frente ao déficit de pessoal. Vale dizer que mesmo nos cotidiano não-emergencial a presença de, pelo menos, mais um educador seria – será – importante para que a dinâmica vital de cada criança seja melhor percebida e acompanhada.

Em vista desta realidade estamos colocando um limite firme na aceitação de novas inscrições. Aliás, fomos procurados por pelo menos um pai para conversar sobre seu filho “com dificuldade na escola”. “Dificuldades” que significam estruturas reativas construídas por pequenos e pequenas assustados e ameaçados em suas sensibilidades profundas e ainda não conhecidas. “Dificuldades” tão grandes quanto às de certas crianças percebidas como “fáceis de lidar” porque obedecem ordens, não fazem “confusão”, mas, na verdade, estão, como os “difíceis”, tentando apaziguar seu medo de ser excluído do grupo que lhes “garante” a sensação de estar vivos.

Nada disto é reclamação, apenas trabalho – e trabalho previsível –, tanto que iniciamos a construção do forno – outra forma de trabalho. As crianças participaram da primeira etapa, a “pisada” no barro que permaneceu, envolto em plástico, fermentando dentro de um buraco. A segunda etapa, erguer a base e construir o piso de concreto, foi mais pesada – serviço de pedreiro -, mesmo assim algumas crianças lá estavam com suas possibilidades. Ontem, 26, começamos a erguer ao iglu do forno propriamente dito. Festa!!! porque os tijolos – oferecidos pelo James e sua mulher Verônica – eram ligados e recobertos exatamente pelo barro fermentado (não queiram saber sobre os elementos, além de terra e capim, que o compunham...). Foi combinado que, quem quisesse, poderia ser “batizado” pelo barro (menos nos olhos, boca e roupa). Todos quiseram!

No sábado, 15, foi feito um mutirão para a construção de prateleiras e estantes necessárias para acondicionar o material doado por Jorge e Fátima, donos da Papelaria Rainha de Fátima, no Rio de Janeiro, Com a madeira doada pela Madecon, uma firma de construção em Cumuruxatiba, construímos: 4 traves de madeira presas ao longo de algumas paredes da casa e que servem de “varal” para pendurar os desenhos e pinturas; uma estante com 6 gavetas, também para guardar desenhos e pequenos objetos de argila – enquanto aguardam o momento de ser queimados no forno da Renata, artesã que vai oferecer uma oficina de cerâmica no Projeto; além de outra estante, bem rústica, com quatro prateleiras onde organizamos o material de estoque e de uso diário. Na Roda foi combinada a regra para o uso deste material para que pudéssemos aproveitá-lo da melhor maneira.

Dia 21 – sexta-feira, fizemos um esperado pic-nic. Quem pode trouxe um alimento ou bebida – juntamos muitas qualidades de biscoitos, frutas, pipoca, bolo e uma torta salgada, sucos e refrigerantes. Fomos à praia – num lugar chamado o Areião por conta de altos montes (como dunas) de areia de onde eles se atiravam como num escorrega ou saltando direto na areia fofa –; depois tiramos o sal e a areia na represa para então seguir até à casa da Gilli , Juan, Sol e Luli para o pic-nic.

Logo depois, Shal – o capoeira do Projeto –, Gilli, Juan e Alexandre fizeram uma excelente reunião que será repetida periodicamente com os outros educadores. Este encontro foi importante porque a equipe, pequena, precisa estar bem coesa, ligada afetivamente entre si, além de familiarizada, sempre mais e mais, com as metas do trabalho.

Está claro que as crianças ainda estão espantadas com este lugar onde nada está pré-determinado, nada está pronto e imposto de antemão. Um lugar onde elas vão, junto com todos, determinar os rumos. Por outro lado, muitos adultos, volta e meia, esquecem que não têm o poder, a força. Têm, com maior ou menor consciência, a autoridade interna que conquistaram na construção de suas vidas e que, com este conhecimento, podem cuidar de uma criança, mas não conduzi-la para este ou aquele lugar.

O Projeto de Gente está sendo trazido à tona com corpo e alma unificados.

Temos agora cerca de 33 crianças, 8 estão comparecendo nas manhãs de terça-feira. Nem todos os outros comparecem todos as tardes (em média, 17).

Esta semana tivemos uma triste notícia: uma igreja evangélica, aparentemente, não concorda com a prática do Projeto de Gente e exortou os pais e mães a não permitirem que seus filhos e filhas participassem do trabalho. Cinco crianças não compareceram esta semana (24 a 28/set). Ainda estamos sentindo a situação para perceber a melhor maneira de vive-la. Por enquanto nada pode ou deve ser feito, afinal o direito de orientação das crianças é de seus pais e mães e, além do mais, o Projeto não pretende orientar ninguém, apenas quer criar um bom campo para as crianças descobrirem a si mesmas em liberdade. Estamos tristes por perceber a forte opressão exercida sobre crianças que, visivelmente, estavam aproveitando os ares do Projeto de Gente. Uma menina de 10 anos chegou, logo nos primeiros dias: tímida, calada, olhava o que acontecia à sua volta. Olhava como quem olha por sobre os óculos, sem encarar; mas não deixava de olhar, curiosa. Dias depois já olhava de frente, olhinhos brilhando, franca e risonha, confiante em si mesma; além do mais, revelou-se uma pessoa muito artística.

Dias se passaram, as cinco crianças, de fato, não estão vindo à casinha do Projeto. Ainda estamos tristes e resolvemos entrar em contato com os pais para reconvidá-los a conhecer mais o trabalho. Por outro lado, estamos sendo procurados, dia a dia, por várias crianças – trazidas pelas que já estão participando – e, nos últimos dias de chuva torrencial em que as escolas não tiveram freqüência, a casinha do Projeto de Gente estava cheiinha de risadas... e algumas confusões.

... Até breve!