sábado, 11 de julho de 2009

Maio e Junho/2009

A não obrigatoriedade de comparecimento ao Projeto de Gente aponta para importantes questões: qual o grau de dependência dos meninos e meninas à obrigação?, qual a nossa possibilidade de estimular a autonomia verdadeira, isto é aquela que é, de fato e de direito, a de cada um?, qual a “autonomia” que nós, adultos e corpo social, oferecemos a eles?, quão acostumados, viciados mesmo, já estão nossos meninos e meninas em relação a não perceberem seus próprios desejos, motivações e, até mesmo, necessidades?, qual o tamanho de suas defesas?, qual a gravidade da fratura de suas vontades, de seu eixo vital pessoal, único?

Quando lhes é oferecido um campo no qual suas vozes serão ouvidas é comum, muito comum, ouvirmos o silêncio, ou palavras inteligentes mas sem alma, palavras que serão – já o sabem! – aceitas e aplaudidas, ou um murmúrio seguido de silêncio e olhos baixos, ou a reação agressiva, os sinais do descrédito.

Volta e meia surge, nos educadores, a sensação de que é necessário que se institua a obrigatoriedade de comparecimento ao Projeto e na Roda, isto é a obrigatoriedade do exercício da democracia, a obrigatoriedade do exercício da livre expressão. Obrigar à democracia? Obrigar à espontaneidade? Obrigar à livre expressão? Vara de marmelo, palmatória, joelho no milho até que a naturalidade seja (re)conquistada? Existe um meio-termo ou qualquer meio-termo, neste momento, é jogar brasa (meia-brasa) na fogueira?

“... o que fazer para que o ser humano se veja (...) parte do mundo natural? Para tanto, é preciso que ele observe a si mesmo enquanto observa o mundo”, disse Humberto Mariotti. Este é o propósito, dito utópico por muitos, do Projeto de Gente. E segue Mariotti: “Este passo é fundamental, pois permite compreender que entre o observador e o observado (entre o ser humano e o mundo) não há hierarquia nem separação, mas sim cooperatividade na circularidade”.

E então, as questões acima, obedecendo a tal circularidade voltam-se para nós, adultos. Conseguimos, enquanto observamos, enquanto cuidamos, observar a nós mesmos? Cuidar de nós mesmos? Podemos aceitar que não há hierarquia nem separação, mas sim cooperatividade? Aceitar que não existem melhores ou piores, mas sim possibilidades diferentes? Podemos construir um saber cuidar oriundo, não da opressão, da superioridade, mas sim do simples conhecer, do simples viver? Podemos distinguir a fronteira entre cuidar – mãos que aconchegam – e o impor – mãos que sufocam? Podemos sentir os meninos e meninas como mestres que apontam nosso desconhecimento, nossos erros, nossos medos, que provocam nossa própria reatividade? Podemos reconhecê-los mestres que apontam, eles mesmos, seus caminhos, embora precisem melhor conhecê-los e mais adquirir habilidades para, então, trilhá-los?

Maio e junho de 2009 foram meses tranqüilos no Projeto de Gente. Tranqüilos com todas estas perguntas. O dia a dia transcorreu em paz, casa nova, muitas brincadeiras e jogos no novo espaço. Começamos a colecionar brincadeiras de várias partes do mundo: a estréia foi com a “queimada suíça” que a Alexandra e o Flavinho ensinaram. Um sucesso! O Marcelo ensinou gamão e ganhou aficionados. A Eliana, esperta e experta, argilou. A Gili também – ocarinas com carinha e corpo de pássaros piaram, mágicas. A Renata vai queimá-las por estes dias. A quadrilha não se organizou – aprendizado de autonomia. Algumas pessoinhas já conhecidas retornaram; outras, novas, firmaram.

Ah! É preciso estar atento – e forte, como diz a canção – para, pacientemente, muito pacientemente, perceber aquele menino ou aquela menina que falou uma palavra nova, ainda não dita – bendita! – na Roda; naquele outro, naquela outra que levantou a voz e disse o que nunca havia dito; no outro que ouviu o que, até então, não ouvia; escutar o que observou: “ué, suas palavras foram de escabrear, mas você não `tava escabreando” (obs: escabrear = brigar, reclamar); valorizar a construção, a cooperação; aceitar a forma de reagir de qualquer um, sabendo, de antemão, que algo motiva esta reação, algo que dói, uma dor que ele mesmo não percebe a origem.

Você é capaz de estar atento assim em relação a você mesmo e não apenas em relação aos meninos e meninas? Você é capaz de tentar perceber onde aquela reação LHE atinge? Você é capaz de tentar encontrar a dor tão antiga, tão menina que você ainda – talvez desde sempre e para sempre – carrega sem saber qual a melhor maneira de lidar com ela, de vivê-la?

Até julho.

Abril/2009

Abril abriu com a perspectiva da nova sede e muita, muita chuva. A vila ficou cerca de seis dias sem energia elétrica. Voltamos à era das velas, falta de geladeira, televisão, rádio, comunicações prejudicadas. Ruas enlameadas, acessos para a parte alta da vila forma se desmanchando. Em certo momento começou a preocupação com a possibilidade da falta de água e mesmo de comida, pois, sem refrigeração, ou se consumia rapidamente o alimento ou ele se estragava.

Quando a chuva dava uma trégua nos reuníamos debaixo do jamelão – aliás, carregadíssimo – no terreno do Cantagalo. Mais de uma vez o toró caiu e era criança para todo lado, correndo para casa.

Finalmente, - negócio fechado! – iniciamos a arrumação do novo espaço. O Nitão – grande e já mencionado amigo do Projeto –, a Eliana, o Begara e o Alexandre foram os educadores que se revezaram na pintura de portas, janelas e paredes; cada dia um tanto de meninos e meninas aparecia para fazer suas marcas.

O problema do número de participantes voltou a se manifestar. Muitos meninos e meninas foram chegando de mansinho. Alguns já conhecidos e que, por variados motivos, não compareceram nesta fase de atividades; outros novos – muitos vizinhos da nova sede. É sempre muito difícil mostrar para eles a necessidade de sermos mais firmes na formação de um grupo com um número certo de participantes; difícil mostrar o quanto precisamos cuidar deste solo inicial, embrionário, que ainda precisa ser muito arado, adubado, para que as fases seguintes possam ser melhor desenvolvidas; difícil explicar que vivemos um verdadeiro rito de iniciação, isto é, construímos um processo onde o saber é aprendido – e apreendido – através da vivência cotidiana. Uma vivência do que nunca foi vivido por nenhum de nós, uma vivência insegura, pois não há um método experimentado e consagrado. Existem, é certo, experiências outras que nos alimentam e inspiram, porém não são a nossa experiência. Cada Projeto de Gente a ser desenvolvido em qualquer outro recanto trará sempre um novo rito a ser vivido. Cada grupo de educadores será um novo grupo, cada grupo de crianças também é sempre novidade, assim como cada comunidade educadores-crianças será sempre diferente, particular, singular.

Em 25 de abril foi inaugurada a nova sede do Projeto de Gente em Cumuruxatiba. Na Roda de Combinações um tanto informal que se organizou foi possível, mais uma vez, constatar a necessidade de um imenso e paciente trabalho para que, pouco a pouco, a roda – ainda quadrada – vá ganhando sua forma mais confortável, redondinha. Vimos adultos e crianças desrespeitando a combinação básica de ouvir o que um componente está apresentando (como já disse alguém: “diálogo existe quando um ouve”); percebemos a falta de costume em ocupar um espaço com sua opinião própria; nos demos conta da impaciência com aquele que parece precisar ser o centro das atenções – do roda, portanto –; da irritação; da tendência de se cair logo na “facilidade” da punição, de “passar um sermão”; sentimos também a dificuldade que é saber o tempo que leva para se ter certeza de que uma certa metodologia é inútil.

Enfim, na inauguração, tocamos, todo o tempo, no tema do parágrafo anterior: iniciação, vivência. Uma vivência que é, ao mesmo tempo, uma iniciação, pois é uma aprender fazendo, um acertar errando. Uma vivência que, ao contrário da aplicação de uma “decoreba” apenas racional, se faz em um clima carregado de emoções e sentimentos, histórias de vida e singularidades.

Enfim, um barco navegando sobre uma correnteza – às vezes leve, outras turbulenta – de emoções, tocado por um vento nem sempre suave e muitas vezes inesperado e, ainda por cima, guiados por um mapa cheio de hiatos. Uma aventura, uma bela aventura! O problema é que, no tal mundo moderno, não se abrem muitos espaços para aventuras. Parece que todos preferem o conhecido, o padronizado, o que está na moda.

Participantes do Projeto de Gente - Cumuruxatiba

Educadores em Campo
Eliana, Cristina, Shal e Alexandre.

Educadores de Apoio
Begara, Ângela, Renata e Dolores

Meninas e meninos
Manhã
Ioane, Ismael, Cleiton, Sula, Sol, Flávia, Fabiana, Alan, César, Fernando, Ana Paula e Fabiane.

Tarde
Sabrina, Mávila, Abimael, Stefany, Olívia, Flávio Dinei, Weber, Maciele, Mireli, Flavinho, Jaqueline, Laiara, Luli, Sol, Douglas, Natália, Carol, Alexandra e Mábia.

Lista de Espera (da qual, pelo menos, seis estão sempre por lá)
Naiane, Robson, Graziele, Mariana, Peterson, Daniel, Lucas, Willian, Jonatas, Jaísa, Madson, Ornan, Sara, Luiza e Nina.