segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Setembro de 2007

Prosseguindo na prática destes, segundo o João, peculiares relatórios nos quais se juntam temas sérios e outros menos sérios – mas que, ao fim, não sabemos ao certo qual é qual –, aí está o 4o comunicado sobre o que aconteceu no dia a dia do Projeto de Gente durante o mês de setembro, em Cumuruxatiba.

Desde um tempo muito remoto a humanidade percebeu a existência de quatro elementos primordiais na natureza: a terra, o ar, a água e o fogo. Esta observação está revelada em incontáveis mitos e ritos de diversas culturas sem qualquer possibilidade de contato imediato.

Faz também bastante tempo que Mestre Jung ensinou que temos algumas ferramentas que nos ajudam a conhecer o mundo e a nos reconhecer nele. As sensações do corpo, o pensamento, os sentimentos e a intuição são alguns destes instrumentos.

Uma poética, porém precisa, analogia pode ser feita entre estas funções humanas e os quatro elementos: a terra representa as sensações corporais; o ar, o mundo do devaneio, dos pensamentos; a água que – efetiva e afetivamente – recobre nossa pele está ligada aos sentimentos e o fogo, símbolo, tantas vezes divinizado, do mistério, do transcendente, da intuição.

Seguindo as pegadas de Jung podemos dizer que o ser humano primeiro percebe, com os sentidos ou intuição, que algo existe. A seguir, o bicho humano pensa, reflete, faz perguntas, pesquisa sobre o que é este algo. E então sente, tem sentimentos a respeito deste algo que, neste momento, ganha uma qualidade, uma dimensão mais ampla. Não a qualidade singela dos animais irracionais que dita uma atitude pronta e sem dúvidas, e sim uma qualidade que interage com outras ganhando, portanto, nuances delicadas e, freqüentemente, muito difíceis de lidar. E cada ser humano tem, em sua bagagem de viagem, uma singular distribuição destes elementos; isto é, uns têm mais ar que terra, outros mais água que fogo; outros mais este ou aquele; e até os que têm um mesmo perfil, vamos dizer, qualitativo, dificilmente serão, quantitativamente, iguais. Assim, somos iguais e diferentes ao mesmo tempo.

“Na dura caminhada pela noite escura”, usamos nossos sentidos e intuições, nossos pensamentos, reflexões e, finalmente, nossos sentimentos para construir uma ação, a ação humana. Portanto, é muito importante que conheçamos o conteúdo deste nosso baú para melhor construir o gesto humano, o pessoal gesto.

SENSAÇÕES CORPORAIS/INTUIÇÕES PENSAMENTOS SENTIMENTOS AÇÃO HUMANA

Se – importante condicional – utilizamos, sem dissimulações, sem segundas intenções, íntegros, as simples capacidades de nossas ferramentas o gesto construído refletirá quem, de fato, cada um é essencialmente, o que podemos, o que temos a oferecer ao mundo, ao Outro. Estaremos também revelando como nosso corpo sente, nossa cabeça pensa e, susto maior, nosso coração sente.

Assim, como uma espécie de fruta que, espontânea e amorosamente, oferece seu sabor único, próprio, a humanidade – cada um de nós – pode oferecer suas qualidades, organizadas de modo único em cada um dos homens e mulheres, meninos e meninas. Porém, apenas os humanos podem negar esta possibilidade – a possibilidade natural – espontânea, amorosa e ofertar outro sabor, assustado, programado, dissimulado, pouco amoroso. Escolhendo a negação de nós mesmos fomos nos afastando da natureza, “dobrando” nossa natureza, esquecendo a amorosidade, o amor-próprio, a própria oferta de cada um à vida;... construindo a destruição, a doença.

O pessoal do Projeto de Gente, um dia, viu, ouviu; ou melhor, viu a invisibilidade da criança, ouviu seu grito surdo. Viu, refletiu sobre como estas crianças não tinham campo fértil para descobrirem seus conteúdos. Refletiu sobre o que viu e ouviu e um longo processo, ainda e sempre incompleto, teve início. Um processo vivido por cada um – pelo Projeto – que avançou através de anos de sensações, reflexões que, muitas vezes, assustavam quando apontavam para lugares do mundo esquecido, laboriosamente esquecido, por detrás de regras, quase sempre muito bem fundamentadas, explicadíssimas, porém, desconectadas da essência de nós mesmos.

Pois bem, em setembro, o Projeto de Gente está tocando no... amor. Estamos (re)aprendendo a amar, (re)iniciando esta etapa da caminhada.

Reaprendendo no dia a dia, costumeiramente avassalador, no qual a água falta; onde “não sobra dinheiro não”; um menino briga com outro ou outra – e, pelo menos uma vez, adultos discutiram entre si ante o olhar, assustado e divertido, de algumas crianças –, outra cai da árvore e, justo esta, faz drama enquanto outros gritam dizendo que não foi nenhum deles que empurrou (ninguém estava perguntando!) e a que caiu diz que foi um deles que, por sua vez, jura de pés juntos que não (na verdade nem tão de pés juntos assim porque senão ele próprio vai cair da árvore onde ainda está encarapitado... E só ele está na árvore!); tem também o dia em que a Roda gira numa velocidade estonteante e, exatamente neste dia, quem ia comprar o biscoito esqueceu-se de fazê-lo e então, todas as combinações parecem ser esquecidas. A lista poderia prosseguir, mas vamos passar direto para um certo item: a drástica diminuição do número de colaboradores. Naturalmente que era esperada uma modificação no quadro, pois é comum que o entusiasmo inicial se arrefeça por conta das mais diversas motivações – alguma claras, outras mais ou menos conscientes embora compreensíveis, principalmente se nos lembrarmos dos primeiros parágrafos deste “estranho relatório”. Felizmente todos os que estão juntos são pessoas com sensibilidades, histórias e temperamentos diversos, mas de olhar terno e coração amoroso.

Entretanto, o resultado deste movimento é que, exatamente, nas situações emergenciais em que um educador precisa estar com sua atenção plena voltada para esta tal circunstância nos vemos frente ao déficit de pessoal. Vale dizer que mesmo nos cotidiano não-emergencial a presença de, pelo menos, mais um educador seria – será – importante para que a dinâmica vital de cada criança seja melhor percebida e acompanhada.

Em vista desta realidade estamos colocando um limite firme na aceitação de novas inscrições. Aliás, fomos procurados por pelo menos um pai para conversar sobre seu filho “com dificuldade na escola”. “Dificuldades” que significam estruturas reativas construídas por pequenos e pequenas assustados e ameaçados em suas sensibilidades profundas e ainda não conhecidas. “Dificuldades” tão grandes quanto às de certas crianças percebidas como “fáceis de lidar” porque obedecem ordens, não fazem “confusão”, mas, na verdade, estão, como os “difíceis”, tentando apaziguar seu medo de ser excluído do grupo que lhes “garante” a sensação de estar vivos.

Nada disto é reclamação, apenas trabalho – e trabalho previsível –, tanto que iniciamos a construção do forno – outra forma de trabalho. As crianças participaram da primeira etapa, a “pisada” no barro que permaneceu, envolto em plástico, fermentando dentro de um buraco. A segunda etapa, erguer a base e construir o piso de concreto, foi mais pesada – serviço de pedreiro -, mesmo assim algumas crianças lá estavam com suas possibilidades. Ontem, 26, começamos a erguer ao iglu do forno propriamente dito. Festa!!! porque os tijolos – oferecidos pelo James e sua mulher Verônica – eram ligados e recobertos exatamente pelo barro fermentado (não queiram saber sobre os elementos, além de terra e capim, que o compunham...). Foi combinado que, quem quisesse, poderia ser “batizado” pelo barro (menos nos olhos, boca e roupa). Todos quiseram!

No sábado, 15, foi feito um mutirão para a construção de prateleiras e estantes necessárias para acondicionar o material doado por Jorge e Fátima, donos da Papelaria Rainha de Fátima, no Rio de Janeiro, Com a madeira doada pela Madecon, uma firma de construção em Cumuruxatiba, construímos: 4 traves de madeira presas ao longo de algumas paredes da casa e que servem de “varal” para pendurar os desenhos e pinturas; uma estante com 6 gavetas, também para guardar desenhos e pequenos objetos de argila – enquanto aguardam o momento de ser queimados no forno da Renata, artesã que vai oferecer uma oficina de cerâmica no Projeto; além de outra estante, bem rústica, com quatro prateleiras onde organizamos o material de estoque e de uso diário. Na Roda foi combinada a regra para o uso deste material para que pudéssemos aproveitá-lo da melhor maneira.

Dia 21 – sexta-feira, fizemos um esperado pic-nic. Quem pode trouxe um alimento ou bebida – juntamos muitas qualidades de biscoitos, frutas, pipoca, bolo e uma torta salgada, sucos e refrigerantes. Fomos à praia – num lugar chamado o Areião por conta de altos montes (como dunas) de areia de onde eles se atiravam como num escorrega ou saltando direto na areia fofa –; depois tiramos o sal e a areia na represa para então seguir até à casa da Gilli , Juan, Sol e Luli para o pic-nic.

Logo depois, Shal – o capoeira do Projeto –, Gilli, Juan e Alexandre fizeram uma excelente reunião que será repetida periodicamente com os outros educadores. Este encontro foi importante porque a equipe, pequena, precisa estar bem coesa, ligada afetivamente entre si, além de familiarizada, sempre mais e mais, com as metas do trabalho.

Está claro que as crianças ainda estão espantadas com este lugar onde nada está pré-determinado, nada está pronto e imposto de antemão. Um lugar onde elas vão, junto com todos, determinar os rumos. Por outro lado, muitos adultos, volta e meia, esquecem que não têm o poder, a força. Têm, com maior ou menor consciência, a autoridade interna que conquistaram na construção de suas vidas e que, com este conhecimento, podem cuidar de uma criança, mas não conduzi-la para este ou aquele lugar.

O Projeto de Gente está sendo trazido à tona com corpo e alma unificados.

Temos agora cerca de 33 crianças, 8 estão comparecendo nas manhãs de terça-feira. Nem todos os outros comparecem todos as tardes (em média, 17).

Esta semana tivemos uma triste notícia: uma igreja evangélica, aparentemente, não concorda com a prática do Projeto de Gente e exortou os pais e mães a não permitirem que seus filhos e filhas participassem do trabalho. Cinco crianças não compareceram esta semana (24 a 28/set). Ainda estamos sentindo a situação para perceber a melhor maneira de vive-la. Por enquanto nada pode ou deve ser feito, afinal o direito de orientação das crianças é de seus pais e mães e, além do mais, o Projeto não pretende orientar ninguém, apenas quer criar um bom campo para as crianças descobrirem a si mesmas em liberdade. Estamos tristes por perceber a forte opressão exercida sobre crianças que, visivelmente, estavam aproveitando os ares do Projeto de Gente. Uma menina de 10 anos chegou, logo nos primeiros dias: tímida, calada, olhava o que acontecia à sua volta. Olhava como quem olha por sobre os óculos, sem encarar; mas não deixava de olhar, curiosa. Dias depois já olhava de frente, olhinhos brilhando, franca e risonha, confiante em si mesma; além do mais, revelou-se uma pessoa muito artística.

Dias se passaram, as cinco crianças, de fato, não estão vindo à casinha do Projeto. Ainda estamos tristes e resolvemos entrar em contato com os pais para reconvidá-los a conhecer mais o trabalho. Por outro lado, estamos sendo procurados, dia a dia, por várias crianças – trazidas pelas que já estão participando – e, nos últimos dias de chuva torrencial em que as escolas não tiveram freqüência, a casinha do Projeto de Gente estava cheiinha de risadas... e algumas confusões.

... Até breve!

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