quinta-feira, 23 de setembro de 2010

junho de 2010

DIÁRIOS DE CUMURUXATIBA
junho de 2010

Olá! Pois bem, o tal movimento dos moradores e viajantes se organizou. Também se organizou o grupo de moradores que organiza o Projeto de Gente: Jaqueline, Alexandra, Alexandre, Thiago, Ornan, Marina e Douglas. Alguns do grupo de “bagunceiros” estão aí.

Pois não é que a onda de bagunça refluiu! Alguns acontecimentos deste mês: a oficina de flauta se fortaleceu, a preparação de uma apresentação – flauta e teatro de sombras – para julho; a própria aula de flauta ganhou novos adeptos (incluindo dois carinhas do famoso “grupo”); a proposta do grupo de teatro avançou. Em um dia de muita chuva vimos um filme – Avatar – e combinamos que uma sessão acontecerá de 15 em 15 dias, seguida de um bate-papo, para quem quiser, naturalmente.

Pelo menos para um dos adultos do Projeto esta foi uma extraordinária experiência, pois ele estava na beira de desistir de, pelo menos, dois daqueles meninos. Ele se sentia dividido entre os que queriam uma dinâmica mais tranquila, calma e os bagunceiros que, de um jeito ou outro, também tinham direito à sua própria dinâmica. Claro que os combinados em roda é que decidiriam a parada e, neste caso, a maioria queria mais paz. De todo modo este adulto estava se acostumando com a possibilidade de considerar o caminho escolhido por aquele grupo como um direito e um fato cristalizado em suas vidas. Enfim, estava aceitando que as couraças organizadas por estas crianças eram já tão endurecidas quanto às de tantos adultos. Restava a questão sobre como trabalhar a situação de reincidência contumaz do desrespeito às combinações. Levar para a Roda e aceitar o que muitos já admitiam como única solução: a expulsão ou suspensão destes meninos?

Um acontecimento, aparentemente casual, foi uma marca importante numa mudança de atitude do grupo: alguns meninos estragaram um jogo – um tabuleiro de gamão – de estimação de um educador e que fora emprestado por este aos meninos e meninas. Quando isto veio á tona houve um clamor forte e alguns dos meninos responsáveis se sentiram muito constrangidos. Agora, poeira assentada, é possível perceber que realmente houve um divisor de águas neste momento. A auto-regulação enfim acontecia. Os meninos perceberam quais seriam as consequências de seus atos – e nem estamos falando de expulsão, embora isto tenha sido discutido. Estamos nos referindo à uma espécie de isolamento que, a partir daquele momento, este grupo passou a sentir. A partir daí alguns destes meninos mudaram de atitude e, de certa forma, passaram a liderar uma mudança. Na verdade, acreditamos que houve uma mudança de consciência mesmo que ainda sem a percepção do que motivava cada um dos componentes do grupo a agirem como agiam. De todo modo, entre alguns, questões começaram a ser levantadas: “O fulano faz isto porque esta com problemas em casa, sua mãe e o padrasto estão se separando e ele não sabe o que vai acontecer com ele”, “Sicrano precisa muito de ter atenção, lá na casa dele ninguém liga p'ra ele, o pai bebe p'ra caramba, a mãe desconta nele”.

Um grande amigo do Projeto tinha a opinião de que os educadores já estavam sendo considerados como pessoas bobas, achincalhados pelos meninos e meninas “da bagunça”. Mas, talvez, estivessem apenas sendo fiéis a um princípio. Para eles, serem eventualmente motivo de chacotas não era o mais importante; o complicado é que uma outra parcela de pessoas – as que não queriam aquela quantidade de bagunça – também estavam corretas em pedir que sua proposta tivesse valor, que fosse qualificada. Largar de mão os “bagunceiros” era difícil para os educadores. Mas, eles aparentemente não queriam compor uma combinação. Foi então que aconteceu o “golpe de sorte” que contamos aí em cima. Há quem diga que não foi “golpe de sorte” e sim o momento – um momento de sincronicidade, diria Mestre Jung – em que novas engrenagens se organizaram, o momento em que eventos aparentemente separados, distintos – apenas aparentemente – se juntaram, o momento da mágica auto-regulação. Afinal, os “bagunceiros” não queriam perder o Projeto e, na hora h, agiram neste sentido.

Lévi-Strauss mostrou que as sociedades humanas, embora diferentes entre si, obedecem, em sua organização, a um código ou sistema universal, isto é, há algo em comum – um fundamento universal – como pano de fundo em todas elas. Tal pano de fundo não é a geografia em que o humano está incluído – embora ela também tenha influência – , nem a natureza externa a ele ou a própria sociedade onde nasceu – embora também isto tenha influência. A cultura de uma sociedade – sua maneira de viver, ver o mundo – é organizada por seus sócios, isto é, por todos os que co-laboram na organização desta estrutura. Este é o pano de fundo: o ser humano e sua muito pessoal sensibilidade, sua forma reativa, sua forma ativa. Cada um oferece seu labor, sua cota e, ao mesmo tempo, recebe o labor e a cota do outro, parceiros nesta construção, todos responsáveis pelos caminhos, pelo destino desta sociedade.

Esta responsabilidade, pessoal e intransferível – e formadora da estrutura coletiva -, é nosso foco de interesse. “Cada vez que, num sistema, um estado surge como modificação de um estado prévio, temos um fenômeno histórico”, disseram Maturana e Varela. Qual nossa cota de responsabilidade na organização do caminho histórico da vida? Qual a qualidade de nossa contribuição pessoal? Qual a “parte que me cabe neste latifúndio”?

É preciso, primeiro, existir para, depois, reproduzir. Será que damos oportunidade a nossas crianças para que elas, primeiro, simplesmente existam ou será que nem percebemos sua existência e já a obrigamos a reproduzir atitudes e comportamentos organizados que, por sua vez, escondem nossa verdadeira e própria existência?

Certa vez uma pessoa disse que seu companheiro lhe fazia muito bem, mas, ao mesmo tempo, de algum modo a obrigava a olhar para a sua loucura – suas próprias palavras. Entre eles isto era percebido como o mais extraordinário acontecimento daquele encontro: por conta do misterioso e maravilhoso afeto que sentiam, um mostrava ao outro seus recantos mais esquecidos, mais sensíveis e que precisavam vir à tona. Mostravam, assim, a fonte de energia vital mais pura, mais primordial, mais legítima, a mais curativa fonte; porém, também a mais exigente, dolorosa e assustadora. Assustadora porque dela ninguém pode fugir sob pena de construir a negação de si mesmo, a ilusão, a desarmonia, a infelicidade. Uma bela possibilidade se apresentava para aquele casal, porém muito trabalhosa, difícil e exigente. Vale mesmo dizer que este casal não conseguiu avançar até onde, certamente, podiam.

Este é o trabalho do Projeto de Gente: ser um campo despreconceituado, sem falsos moralismos, livre o máximo possível para que todos possam se desenvolver de acordo com suas fontes originais. Contudo, vários aspectos conspiram contra e dificultam o trabalho. (1) Nós, adultos do Projeto, estamos livres? Resposta: claro que não! (2) O campo para onde nossos meninos e meninas retornam – casa, escola – tem quais tipos de qualidades? Em relação à primeira questão, além do “claro que não”, também podemos dizer que, pelo menos estamos tentando lidar com esta contradição, não negá-la. Quanto á segunda questão, as limitações são imensas. Quantas vezes, no dia a dia do trabalho, vimos um carinha saindo do Projeto com uma atitude, com um certo brilho e voltando no dia seguinte com esta luz apagada, já esquecida.

Dá para sentir o tamanhão do trabalho?

Até a próxima!

abril/maio de 2010

Diários de Cumuruxatiba
abril/maio 2010

Como abril foi um mês de muito trabalho, não conseguimos escrever o diário. Melhor assim, pois, abril e maio revelaram-se meses bastante parecidos em sua dinâmica.

Vamos propor uma metáfora que, talvez, facilite a compreensão deste movimento: um dia, conhecemos um menino que veio ver como era o Projeto de Gente. Menino de 12 anos, pele negra, olhos de jabuticaba – lugar comum mas real –, gentil. Como tínhamos poucas crianças naquela segunda-feira, nós o convidamos para participar. O menino mostrou-se, de fato, gentil, colaborativo, solidário. Morava na Areia Preta – um bairro mais distante do Centro de Cumuruxatiba –, o que nos deixou contentes, pois, pela distância, é difícil alcançar os meninos e meninas deste bairro.

Durante a semana ele veio, sempre sabendo que sua permanência dependeria do número de participantes – um limite espacial. O grupo de inscritos do Projeto está, neste momento, completo (42 pessoas).

Mais ou menos a partir da 3ª semana seu comportamento, gentil e participativo, foi, a pouco e pouco, modificando-se. 4ª semana: definitivamente à vontade, o menino mostrava outras facetas – provocador, “zoador”, desrespeitando as combinações (todas feitas em rodas de conversações).

Dissemos “à vontade”, é verdade, porém, talvez seja melhor não dizer “à vontade”, pois este menino não está exercendo sua vontade original. Está, de fato, apenas repetindo uma atitude organizada ao longo de anos e anos de massacre à sua verdadeira vontade. Sua vontade original, sua fonte vital original está escondida, esquecida. Ele não é mais consciente protagonista na construção de sua história, pois não é mais ativo, é reativo. Como disse Rousseau: “O homem nasce livre e por todo lado está acorrentado”. E, concordando com este pensador, acrescentou Wilhelm Reich: “... o homem nasce livre, mas é como escravo que ele passa a vida”, um escravo esquecido de sua liberdade, tão bem escravizado que não sabe mais como é ser livre. Tão bem escravizados que aceitamos como regras de liberdade (e felicidade) as correntes que nos prendem a uma mesma e repetitiva maneira de (re)agir.

Ao longo da vida, de fato bem no seu início (ainda intra-útero, apontam muitas observações), já aprendemos a nos contrair, amolecer, enrijecer, e a manter estas atitudes até perder a forma original, até esquecê-la. Nos contraímos, amolecemos, enrijecemos pois nos vemos frente a diversas circunstâncias ameaçadoras. Depois, assustados, confusos, mantemos estas estruturas emocionais mesmo quando não mais ameaçados. Cuidadosamente camuflamos (disse Reich) o ponto onde a atenção deveria se focalizar, desviamos esta atenção, perdemos contato com nossa sensibilidade mais profunda, pois lá está o medo que um dia foi tocado, a sensível ferida que também nos identifica como aquela pessoa.
Assim somos a maioria. Talvez seja correto dizer, todos; todos em todo o mundo.

Por isto, por ser constituído por pessoas comuns, a comunidade do Projeto de Gente é também presa destas tão humanas armadilhas. Já fomos mais gentis, generosos, participativos, criativos. Um grupo de meninos e meninas seguiu o exemplo do menino de pele negra e olhos de jabuticaba. Não seguiu este menino que, embora exista, aqui foi ilustrativo.

Mas, o que aconteceu? Perdemos o controle da situação, como sugeriu uma pessoa adulta que participava do trabalho? Participava, pois, em um dia particularmente difícil, trabalhoso, ela alcançou seu limite e desligou-se do Projeto.

Enfim, nós perdemos o controle ou nunca o quisemos? Se, por outro lado, o “controle” foi tomado por uma maioria, então, democraticamente, apenas cabe aceitar. Democraticamente a maioria tem o direito de organizar a comunidade. A democracia, muitas vezes, revela-se um lugar de maioria feliz e minoria infeliz.

O Projeto de Gente tem outra – e sutil – proposta: democracia sem vencedores nem vencidos; democracia onde prevalecem as combinações e não a simples escolha de uma opção; democracia onde, mais do que no voto, as decisões são debatidas e deliberada uma combinação. Combinação, como o nome diz, pode ser o resultado da junção entre várias possibilidades. Claro que o voto, em algumas circunstâncias, é a saída mais limpa; entretanto, neste momento, todos estão acordados sobre a necessidade desta ferramenta. O voto não é a democracia, é uma ferramenta; democracia é o debate aberto, franco e, principalmente, solidário. Infelizmente, no tal “mundo real”, aparentemente, o jogo democrático tornou-se um confronto entre inimigos; e frequentemente jogo sujo, desleal, corrupto. Assim, franqueza e solidariedade, no jogo político, são qualidades quase incompatíveis.

Entretanto, na situação que estávamos vivendo, não havia uma conquista democrática de um grupo convencendo aos outros sobre a beleza e justeza de sua proposta. Havia um grupo, minoritário, forçando uma situação.

E o Projeto tem o direito de impor sua proposta? Certamente não de impor, mas pode apresentá-la claramente como uma opção. Discuti-la, debatê-la. Além disto, os que ouvem têm a chance de melhorar esta proposta com sua sugestões. Assim, uma vez ouvida, debatida, compreendida, uma pessoa pode perceber se deseja ou não participar do movimento.

Nestes dois últimos meses, foi, sistematicamente, dito a este grupo de meninos e meninas que eles não estavam deixando o Projeto de Gente ser o Projeto de Gente. Ora, podem dizer, mas isto é muito poder para um grupo de meninos e meninas. E é mesmo! E é para ser mesmo! A auto-regulação apenas acontece com as pessoas percebendo seu real poder. O projeto mantem-se fiel ao fato de que as crianças vão se conhecer à medida que observam o mundo que criam junto ao outro.

Porém, um quase paradoxo se formou: o Projeto de Gente é um lugar onde as pessoas podem ser quem são; mas, como um lugar que pretende apoiar as pessoas a serem quem são não pode ser, ele mesmo, o que é?

Não foi surpresa quando, defrontados, com as consequências de seus atos, os tais meninos e meninas concordaram que, de fato, o Projeto não estava sendo o Projeto. Concordaram por um simples motivo, inquestionável: eles sabiam que estavam desrespeitando os combinados; sabiam que, se não concordavam com algum, também não estavam fazendo questão de comparecerem às rodas de debates sobre os rumos do trabalho. Deste modo, os outros não sabiam porque aqueles estavam desrespeitando as combinações nem se teriam outras a sugerir.

Dois grupos se estabeleceram: (1) um exigindo que o Projeto fosse o Projeto – um lugar onde as combinações são debatidas, deliberadas e respeitadas; onde uma combinação pode ser alterada – na roda – assim que se percebe que uma outra é melhor. (2) Outro, comparecendo ao Projeto, porém desrespeitando as combinações.

Como não há a ferramenta da exclusão – a velha e ruim expulsão –, para alguns, um impasse se formou. “Vamos deixar os caras colocarem fogo no Projeto?”, perguntavam uns. “Por que não expulsamos quem descumpre certas combinações?”, diziam outros. “Mas, será que expulsar resolve?”, “Será que estes caras que estão botando fogo não estão precisando de uma ajuda, será que estão fazendo isto só para chamar atenção?”, outros elaboravam.

Algumas circunstâncias ficavam claras: a flutuação em relação ao comparecimento na roda dificultava a legitimação das decisões. Em uma certa roda, 10 crianças decidiam algo e deixavam outro algo semi debatido. Na roda seguinte novamente 10 crianças estavam presentes, porém, da 10 do outro dia apenas duas eram as mesmas. O semi debate não havia valido muito. Seria necessário tornar a roda obrigatória? Mas, uma democracia que começa com compulsoriedade parece estranha.

Na verdade, o que fica, mais que tudo, claro é que as meninas e meninos não estão nem um pouco acostumados a participar das decisões nos ambientes em que eles são maioria e – deveriam ser – principais protagonistas; vale dizer, não são protagonistas em seus próprios palcos.

Com todos estes acontecimentos e conclusões, decidiu-se que: (1) os meninos e meninas comprometem-se a comparecer, pelo menos, dois dias – dos quatro de trabalho – ao Projeto. O que se fará com quem não cumprir este combinado, ainda não se sabe. (2) Os combinados precisam ficar mais claros para todos, isto é, precisam ser melhor divulgados. Além disto, as rodas precisam ser mais estimuladas e estimulantes.

Nos últimos dias uma ideia, já mencionada, voltou a ganhar força. O Projeto seria como um país onde existem moradores (pessoas que frequentam com assiduidade), moradores que viajam muito (naturalmente os que não são tão assíduos) e visitantes – aqueles que não estão inscritos (por limite de vagas) no Projeto mas, quando possível, passam o dia conosco. Os moradores fixos seriam os principais responsáveis pelos caminhos do país, pois, por viverem nele, melhor sabem de seus problemas e possíveis soluções. Naturalmente que estas soluções não seriam simplesmente impostas aos outros moradores, mas aqueles se responsabilizariam em levar para estes tanto os problemas quanto as sugestões de soluções.

Esta proposta pareceu bem interessante do ponto de vista organizacional. Porém, a maioria dos meninos que “botam fogo” são, justamente, os mais assíduos. (Interessante isto, não?) Os que descumprem as combinações seriam, portanto, os responsáveis principais por elas. A raposa tomando conta do galinheiro? Nada disto! A crença na sensibilidade e na inclusão dos caras!

Isto ainda não está decidido, mas... vamos a ver!

Em final de maio começamos uma Oficina de flauta com o Mestre Dema. Contudo, uma sequência impressionante de dias de chuvas muito intensas que impediram o trânsito pela estrada de acesso a Cumuruxatiba, dificultaram este início de trabalho.

A vinda de Dema deve-se aos recursos obtidos por um grande amigo do Projeto de Gente, o Herbert Moosmann. Ele, austro-cumuruxatibense, tem um grupo de amigos há muitos anos trabalhando com eventos culturais e decidiram apoiar o nosso trabalho. Muito obrigado, Herbert e amigos!

março de 2010

Diários de Cumuruxatiba
março de 2010


Em fins de fevereiro a vila amanheceu com este cartaz espalhado pelos tradicionais e democráticos pontos de avisos, recados e convocações:



NOVIDADE NO PROJETO DE GENTE

Em 2010, estamos abrindo um grupo para crianças de 3 a 5 anos de idade.

Vagas: 08

Os pais, mães ou responsáveis interessados devem comparecer na sede do Projeto de Gente na Rua Santo Antônio (em frente ao Tadeu e ao Restaurante da Isabel) nos dias 22 e 23 (segunda e terça-feira após o carnaval) das 17:00hs às 19:30hs.

No dia 1º de março, lá pelas 8:30h da manhã, chegavam a Eloah, o Jeremy, o João, o Jonatan, o Kevin, o Oton, o Sávio e o Theo. Aqui, em ordem alfabética; lá, na deliciosa des-ordem das crianças; para nós, iguais no direito à atenção, ao cuidado, ao respeito em relação aos seus projetos de ser, de existir, todos únicos.

Logo na entrada pudemos sentir a imensa responsabilidade assumida pelo Projeto de Gente: era palpável a emoção de mães e pais trazendo seus filhotes para um ambiente outro, diferente de suas já bem conhecidas casinhas. Todos estavam bem cientes que o Projeto não é uma escola; entretanto, a energia circulante (bom exemplo para um certo uso desta complicada palavrinha: energia) era a de primeiro dia na escola.

Crianças de olhares atentos, coladinhas aos pais e mães, mochilinhas nas costas, sacolinhas nas mãos. Uns mais introvertidos, quietos – exploradores visuais –, outros mais expansivos, inquietos – exploradores táteis. Aqui, um concentrado; ali, outro devaneador. Um falante, outro, escutador. Um gesticula amplo, segredos por detrás; em outro o gesto é quase secreto, segredo a ser desvendado. Todos desenhistas, escultores, pintores, construtores; cada um, um desenho, uma escultura, uma pintura, uma construção – uma revelação. Verdes, traços, círculos, caras e bocas, vermelho, azul e amarelo, sóis e luas. Risos, choros, gargalhadas, conflitos, arranjos, rearranjos. Areia, baldes e água. Música, dança. Chuveirada – viva o sol do sul da Bahia! - e lanche. Histórias contadas e ouvidas, olhos brilhando. E o primeira manhã da turminha dos pequeninos passou rápida.

Uma; duas; três; quatro semanas e mais três dias. 23 dias. Primeiro mês.


O ano de atividades do Projeto de Gente em 2010 abre com uma compreensão mais clara do trabalho. Na misteriosa sincronicidade da lei natural, a chegada da Ana Lúcia e a organização da turma dos pequeninos – a Oficina dos Pequeninos – é a corporificação de um melhor entendimento do trabalho no Projeto de Gente.

Os pequenos, e para os desabituados em aprender com pequenos pode parecer paradoxal, trazem organização ao trabalho. Eles são, sem peso ou cobranças sobre seus ombros, campo organizacional e de florescimento para a continuidade do Projeto de Gente, pois exigem atenção e cuidados naturais e específicos. Ao cuidarmos de cuidar deles, somos, naturalmente, obrigados a nos cuidar; somos obrigados a atentar para novos – e muito pessoais – limites; somos obrigados a rever o que é cuidar, o que é obrigar; a fazer a distinção entre apresentar e impor, entre ser duro, flexível e firme, entre habituar ou incorporar, conscientes, atitudes de saúde que nosso corpo pede (lavar os dentes e mãos, por exemplo). Com eles – os pequenos – vamos aprimorar a rede de proteção que tentamos, dia a dia, estender por debaixo das brincadeiras, conversas, oficinas e jogos no Projeto; com eles vamos aperfeiçoar a aproximação com os pais e mães, avós, avôs e tios. Afinal, um carinha de 8 anos ou mais vem só para a casa do Projeto, mas o de 3 a 5 só vem com alguém.

Os nomes dos pequeninos já estão lá em cima. Os maiores de 2010 são: Jéssica, Laiara, Marina, Talita, Thiago, Igor, Matheus, David, Douglas, Ester, Lucas, Nathalia, Gabriel, Ramon, Messias, Peterson, Ornan, Vitor, Flávio, Flavinho, Sara, Stefany, Sabrina, Daniel, Isaías, Jaqueline, Larissa, Patrick, Flávia, Natan, Gladstone, Alexandra, Douglas Costa, George, Lucas, Dilermano, Fabiane, Ana Paula, Abimael, Mávila, Sulamita, Cleiton.

Quanto aos maiores, em março, pareceu que estavam um tanto enciumados em relação aos pequeninos. Apesar das conversas durante o mês de fevereiro e todas as rodas do mês, eles reclamaram do espaço diminuído, do material exclusivo, das frutas incluídas no lanche dos menores. E, mesmo com todas estas circunstâncias debatidas e resolvidas em comum acordo, o certo é que um certo movimento foi ficando claro: um grupo – minoritário, mas, como de costume, contando com o silêncio da maioria – de pessoas passaram a, gradativamente, descumprir combinações propostas. Combinados simples – como lavar os copos depois do uso – ou outros mais importantes – desrespeito agressivos, implicâncias aparentemente sem sentido. Um descumprimento claro, sistemático e, até mesmo, ostensivo. Esta não é uma observação absoluta, não é completamente clara a inter-relação entre estes eventos; porém, não é possível deixar de juntar coisas. Vamos observar mais.

Janeiro/Fevereiro de 2010

Diários de Cumuruxatiba – Janeiro/Fevereiro 2010

Verão absurdamente quente. Se há gente falando que não existe o tal aquecimento global – e bem pode ser verdade visto que, aparentemente, a maioria das pesquisas ditas científicas estão comprometidas por interesses outros –, pelo menos em Cumuruxatiba, o aumento da temperatura média neste verão em relação aos últimos anos foi sensível. Bom para o turistas e a moçada de férias que viveram dias e dias de sol num céu sem nuvens, sombra só a das amendoeiras. Bom para os que vivem – quase todos da vila – do comércio com os turistas. Não tão bom para os lavradores que rezavam para que um pouquinho de água caísse daquele céu sem nuvens, nem que fosse à noite quando os turistas não estão na praia ou no mar.

Fernando Pessoa escreveu:

“... Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
- Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E quando haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade...”

Ainda temos muito o que aprender!

O Projeto de Gente viveu um longo recesso, pois as escolas da vila, este ano, apenas reiniciaram suas atividades em março. Nós, como sempre fazemos, seguimos este calendário.

Tempo de reflexões e re-estruturações. Nosso amigo Herbert, que já havia mencionado um oferecimento, reiterou o desejo de obter recursos junto a seu grupo para viabilizar a presença do Mestre Dema – músico mineiro, professor de flauta e violão – no Projeto de Gente. Dito e feito! Em janeiro, Herbert nos procurou com as combinações básicas já realizadas junto a seus amigos e também com o Dema. Vamos entrar março com a Oficina de Flauta do Mestre Dema!

Outra grande novidade vai ser a 1ª turma de pequeninos no Projeto. Ana Lúcia – pedagoga carioca que conheceu o trabalho em 2009 – realizou um corajoso movimento: mudou-se de armas e bagagens (mais bagagens do que armas, visto que é uma pacifista) para Cumuruxatiba. Vai trabalhar no Projeto pela manhã cuidando de 8 pequenos com 3 a 5 anos. Ana traz na tal bagagem um currículo muito importante: professora, dona de escola por 10 anos. Também vai estar com as crianças da Escola Tiradentes no período da tarde.

Negreiro e Pé de Serra poderão voltar ás atividades relacionadas à capoeira. No ano passado, compromissos outros impediram nossos amigos de participar. Estão de volta!

A Bel Nogueira – jovem estudante interessada em experiências de educação libertária, estudiosa do teatro de Augusto Boal – já marcou dia de chegada.

Dolores, nossa conhecida chef de cozinha, vai dar uma tarde por mês de trabalho. Neste dia vamos fazer uma Oficina de Alquimia Culinária e, aproveitando, uma festa com o que se fez. Nesta festa vamos convidar os pais e mães da moçada do Projeto de Gente.

A Cristina Leme, mestra da Informática em 2009, está viajando e ainda não confirmamos os dias, em 2010, da sua oficina. No quadro mantivemos os dias do ano passado.


2ª feira
3ª feira
4ª feira
5ª feira
6ª feira
MANHÃ

(8:30 às 11:30h)
Pequeninos da Ana
Pequeninos da Ana (atividades na praia)
Pequeninos da Ana

Oficina de Teatro da Bel e do Alexandre

Oficina de Informática da Cristina Leme
Pequeninos da Ana


Pequeninos da Ana

Oficina de Capoeira do Shal
TARDE

(13:30 às 17:00h)


Oficina de Arte da
Eliana
Oficina de Capoeira do Pé de Serra
Oficina de Música do Mestre Dema

Oficina de Teatro da Bel e do Alexandre

Oficina de Informática da Cristina Leme

O intrépido exército de Brancaleone vai tomando sua forma em 2010! Tomando forma à medida que reflete e sente seus movimentos.

De fato, o verão foi um momento de muita reflexão, conversas, troca de ideias entre os componentes do Projeto – crianças incluídas, embora ainda estejam muito desacostumadas a participar deste tipo de organização –, entre estes e outras pessoas interessadas no trabalho.

Algumas percepções foram confirmadas: o formato atual do Projeto de Gente favorece, ou melhor, atrai, principalmente, a moçada até 12/13 anos. Os mais velhos, modo geral, buscam atividades outras (mais esporte, teatro, dança); as oficinas de arte passam a ser menos procuradas (“só desenhar e pintar fica sem graça”, dizem... É justo!). É bom dizer que ficam sem graça exceto, claro, pelos realmente interessados. Interessados, porém, enfrentando os muito comuns conflitos entre o que desejam de verdade e o que a turma “pede”, ou melhor, exige como comportamento padrão. Para eles fica a sensação de que se não se comportarem como a maioria – ou como os dominantes – não serão aceitos na turma. Naturalmente existem aqueles que identificaram no trabalho do Projeto a marca da liberdade, da autonomia, a chance de terem conversas francas sobre qualquer tema e nos procuram para exercer estas possibilidades. Muito bom. Entretanto, como no Projeto não existe frequência obrigatória, também estes se sentem pressionados e sua presença passa a ser um tanto irregular, pois flutua ao sabor de suas preocupações, conflitos e outras questões já conhecidas (trabalho doméstico, na roça, etc). Assim, ficamos mais distantes da interação mais constante que permitiria um conhecimento mais amplo sobre seus sentimentos e sensibilidades.

Temos conversado sobre criar oficinas que estejam mais ligados aos interesses deste grupo – a informática, o teatro, por exemplo. Da informática poderia surgir a possibilidade de uma publicação mensal. O pessoal da capoeira – Shal e Pé de Serra – se interessaram em participar deste movimento. Também vamos pensando sobre como explorar, mais e melhor, a necessidade de se ter um espaço que seja um fórum livre para debates, conversas informais, aprofundamento nos temas de interesse e, frequentemente, fonte de conflitos. Como criar, com naturalidade, estes espaços se não é a prática comum destes meninos e meninas? É preciso esperar, pacientemente, as oportunidades, os momentos que se abrirão para que as peças se encaixem sem forçação, sem amassar as pontinhas e, consequentemente, estragarem. Amassar as pontinha – embora com a melhor das intenções, vamos lembrar sempre – significa repetir os velhos formatos que obrigam, desrespeitam e invadem.

Outro ponto: o grau de defesa de muitas crianças. Sobre isto falamos – começamos – no diário de dezembro. Vale tocar novamente, e quantas vezes for necessário, neste ponto. Pois bem, durante o ano de 2009, fomos defrontados e, por vezes, confrontados fortemente, com a organizadíssima couraça de muitos meninos e meninas. Exemplificando: (1) o menino que a cada dia se mostra mais e mais “marrento”. Pois bem, a cada dia, frente às demandas, exigências do grupo social e, principalmente, defrontado com sua própria sensibilidade, ele vai adotando atitudes-padrão: uma postura mais agressiva, risadinhas provocativas, a ginga padrão, as roupas – uniformes – de praxe e de marca, o uso estereotipado do celular com música. (2) A menina que, desconhecendo suas demandas mais profundas, sua sensibilidade mais verdadeira, seus medos e inseguranças, vai ampliando uma espécie de “zona de segurança”. Zona esta que apenas a esconde, falsamente protegida. Ela se recolhe, se isola, colocando em um mesmo saco de gatos todos os adultos – incluindo aquelas pessoas com as quais ela podia contar, conversar e abrir seu coração. Agora, 14 anos, grávida, temos um outro cenário. (3) O menino que, aos poucos, ia falando sobre suas questões familiares e que, abruptamente, se afasta. Dois, três dias se passam e ficamos sabendo que seu pai – fonte de amor e ódio (Lugar comum? Comum, mas real, realíssimo!) - estava no hospital, internado com graves traumatismos por conta de uma briga no bar. Procuramos o menino e encontramos um carinha reativo, raivoso, descrente de qualquer opção senão a violência (Naturalmente que tudo isto apenas implica no que já temos: muito trabalho)

Um dia, contou um dos educadores, ele – este educador – chegou em casa, após o dia de trabalho, e emocionado, angustiado, pensou na estranha possibilidade de trabalhar apenas com crianças órfãs, afastadas, de algum modo, desta sociedade tão pouco fértil para o desenvolvimento de uma criança, tão pouco colaborativa no sentido de que ela – a criança – possa ter paz minimamente suficiente para se descobrir e prosperar. Ao sentir assim ele estava demonstrando a imensa importância do campo onde as crianças devem – deveriam – se organizar. Um campo que pode oferecer adubo ou veneno para este desenvolvimento. O adubo é a compreensão do processo de individuação de cada um, o afeto construtivo, colaborador. O veneno é justo o avesso, o desconhecimento, a desqualificação, a surdez, a cegueira em relação a este processo, isto é, o afeto destrutivo, confrontador, não acolhedor.

Até março!

novembro/dezembro de 2009

Diários de Cumuruxatiba
novembro/dezembro de 2009

Em 05 de dezembro foi realizada a festa de encerramento de atividades no ano de 2009 do Projeto de Gente.

A programação: concurso de desenhos, entrega de medalhas dos II Jogos, apresentação de uma peça teatral, apresentação dos meninos e meninas do Projeto que participam do Curumimbatuque e do SerMovimento (o 1º, um grupo de percussão; o 2º, um grupo de dança afro-indígena; os dois são atividades culturais levadas a efeito pelo esforço voluntariado de algumas pessoas da vila – Walter, Rauã, Cauã, Aldo, Juliana, Lucinha, Nanda... e mais gente que não estão esquecidos, apenas não estão nomeados aqui por culpa exclusiva da estropiada memória de quem escreve!) e festa propriamente dita.

Bons movimentos se fizeram presentes logo na preparação do cenário da festa. A Nudi chegou, de surpresa, com um bonito cartaz anunciando: Festa do Projeto de Gente. Logo depois, chegou um bolo de chocolate com as letras PDG – que é como as crianças abreviam Projeto De Gente . O bolo foi patrocinado pela D. Lúcia da farmácia e preparado pela Lucinha, a das cocadas. A Gili e a Jaqueline também prepararam um belo bolo em formato de tobogã – um lado era bem mais alto do que o outro, o que provocou muito riso; outro trouxe um refri – aliás, 2, 3, 4... e a geladeira ficou cheiinha. Outro trouxe um saquinho de suco. Chegou a pipoca da Lulu, o delicioso bolo alemão da Claudia. Alguém trouxe uma torta de banana – quem foi que cometeu esta delícia? A Cristina Leme embrulhou num lindo papel – azul e verde – cheio de fiapos, uma por uma, uma montanha de balas de coco. As crianças prepararam cartazes de boas vindas e o cenário do teatro. Fiéis ao convite cada um trouxe o que pode, fez o que pode.

Aliás, o convite:
CONVITE

…..................................... e todo o pessoal do Projeto de Gente convida você para participar da nossa festa de fechamento de ano. Nesta festa cada um oferece o que pode. Tem um que traz alegria, outro uma cocada, outro um suco, outro um sorriso, outro um bolo, aquele uma gargalhada, outro ajuda na decoração, aquele ajuda no som, este aqui traz um refri. Quando cada um oferece o que pode, todos oferecem igualmente.
Dia da festa: 05 de dezembro de 2009
Hora: 2hs da tarde
Local: na sede do Projeto de Gente

Cada menino e menina colocava seu nome e, de acordo com a combinação feita, convidava duas pessoas. Foi interessante ver alguns combinando entre si para que não fosse desperdiçada nenhuma possibilidade de convidar um alguém já convidado pelo outro.

A festa começou. Concurso de desenhos. À medida que os desenhos estavam prontos a Gili e a Eliana, participantes do júri técnico, perceberam que deveria haver uma categorização por idade. Tinha gente de 07, 08 anos e gente de 15, 16, fazendo desenhos. No blog Maré da Gente já tem algumas fotos dos trabalhos e da festa.

Na hora da entrega das medalhas dos Jogos apareceu uma convidada inesperada e indesejável. Foi um problema, pois não tínhamos como mandá-la embora. E, diga-se de passagem, contrário a todos os conceitos de inclusão do Projeto de Gente, foi completamente unânime o desejo de expulsar este ser. Era a companhia de energia elétrica que sempre que aparece nos eventos da vila, não se sabe porque, não traz consigo a... LUZ!!!!! Logo naquele dia que tínhamos conseguido – o Rico emprestou – uma bela caixa de som com amplificador, microfone e aparelhagem de CD para as apresentações. Foi de lascar!

Daí, tudo que estava arrumadinho se transformou na máxima dita pelo Flávio durante os ensaios: “Luzes... Câmara... Confusão”. Mas, funcionou mesmo assim; a moçada é mesmo criativa e, tirando o estresse de um ou outro adulto, tudo aconteceu!

Mudamos a ordem das coisas na esperança de que, pelo menos na hora do teatro, chegasse a luz que, tínhamos certeza, estava tentando driblar sua opressora, a COELBA – a empresa de desenergia.

As apresentações de dança afro puderam ser realizadas contando com a astúcia da meninada do batuque – mestres na arte do ritmo e do improviso. Menos mal; aliás, para alguns, mais bom, pois a moçada tem mesmo baticumbum no espírito, no coração, pulmões, veias e artérias!

No meio da dança a Luz apareceu, ofegante em sua velocidade, mas apareceu! Palmas para o batuque, para as meninas e meninos... e também para ela – a luz.

A peça de teatro foi inspirada no trabalho do Pedro Paulo Rangel – a Soppa de Letras. Ele teatralizou letras do Chico Buarque de Holanda. No nosso humilde caso – pedindo licença aos mestres Rangel e Buarque – criamos quatro esquetes que se interligavam. No 1º, um casal separado há algum tempo se encontrava por acaso. A moça, engasgada ainda com o jeito com que aconteceu o fim do relacionamento, resolve desabafar e fala “Olhos nos Olhos”. No 2º, outro casal, separação recente, se encontra em sua antiga casa, onde agora ela mora só, para ele pegar alguns objetos que faltavam. Ele, triste, resolve também desabafar e o faz com “Trocando em miúdos”. Depois o 3º esquete, ambos se encontram num bar, em mesas separadas, com amigos. Ela e ele falam, como num jogral “Mentira” - não é este o nome da canção... Quem souber publique nos blogues!. Finalmente, todos vão para um baile de Carnaval e, na porta, os dois separados se veem, arrepiam-se e falam “Quem é você?”. Tudo termina numa festa de carnaval com direito a confete, serpentina, pierrot e colombina. Entre cada esquete um trechinho de Chico “ao vivo” cantando exatamente as tais canções.

Sentiram a importância da energia elétrica? Felizmente, ela chegou a tempo de participar. Por outro lado, os atores estavam inquietos com a possibilidade de não acontecer o espetáculo. Foi lindo o esforço de concentração deles. Nem tudo correu como no ensaio, mas o suficiente para sermos convidados a nos apresentar no verão!

Depois, muito cachorro quente, bolos, pipoca e refris.

Novembro fez lembrar, em vários momentos, uma cena do John Woo. Neste filme ele coloca um civil patrocinando o roubo de um míssil atômico. O executor da ação é um militar que, cansado, do nervosismo do civil dá um “chega p'ra lá” nele dizendo: “Cara! A vida é igual a uma batalha, nunca sai de acordo com o planejado! A gente tem que aceitar o que acontece e agir, improvisando, aceitando o que aconteceu, vivendo!”. Tirando o fato de que, nós do Projeto de Gente, somos basicamente pacifistas e, portanto, não “brigamos” por nossos planos, trabalhamos por eles, a fala do Travolta cabe como perfeito aprendizado.

Paulo Freire comenta na “Pedagogia da Autonomia”: “Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho e se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã”. Infelizmente, para muitas pessoas, domesticadas pelos padrões vigentes, assustadas por demais para se arriscarem no que, de fato, sentem e pensam, o agir é predeterminado, amarrado como uma roseira que, se presa por um barbante, vai se entortando, entortando até tomar o rumo pretendido por quem quer que tenha usado o tal barbante. O rumo livre do novo que se faz velho para um novo que se fará velho estará comprometido. A simples equação da vida onde o que se organiza se desorganiza para se reorganizar está violada.

Infelizmente, esta trajetória forçada pode ser, dia a dia, confirmada nas ações dos meninos e meninas que, desde cedo – muito mais cedo do que muitos educadores do próprio Projeto de Gente puderam imaginar – , se veem coagidas, sob a possibilidade de penas severas, a adotar leis e ritmos que não são os seus próprios ritmos e leis. Meninos e meninas com seu crescimento engessado, a coluna quebrada, a vontade e o desejo esquecidos.

Assim, como as crianças, o Projeto vive em seu dia a dia acontecimentos que não eram esperados no planejamento de sua implantação e desenvolvimento. Pessoas, mesmo muito próximas mas desacostumadas ao verso de Leminski: “Nunca erro duas vezes, erro logo 3, 4, 5, 6 vezes, até o erro mostrar que o erro também tem fez” (na verdade, ele, o poeta, é mais radical e diz que apenas o erro tem vez, a gente pede licença a ele e coloca nossa crença), apontam com severidade para circunstâncias que, no mais das vezes, são conhecidas dos trabalhadores do Projeto. São de fato conhecidas, porém, outras circunstâncias – estas muitas vezes invisíveis aos que comentam, apenas conhecidas pelos trabalhadores do cotidiano – impõem uma rota imediata, urgente. E viva o cara que escreveu os diálogos do filme do Woo que nos ensina como agir, como viver estas situações!

É assim que o trabalho vai sendo levado adiante. Ainda outro dia dois educadores conversavam sobre como as qualidades de um deles poderiam estar melhor aproveitada se existisse uma pessoa disponível para fazer alguns trabalhos também essenciais para os meninos, meninas e para o próprio Projeto de Gente. Pelo fato desta tal pessoa ainda não fazer parte da equipe – falta de recursos financeiros impedem sua contratação – certos aspectos são vistos como negligenciados por gente que passa na periferia do Projeto.

Alguns dizem que devíamos fazer assim, outros assado, existem os que reclamam de um ponto, de outro. Quase sempre todos estão certos. Resta o consolo que, de modo geral, a gente sabe disto; apenas, por variados motivos, não damos conta de alcançar tudo. Aliás, não sabemos se estamos lentos, no tempo correto ou mesmo se avançados no cronograma. Cronograma?

Qual o cronograma para a descoberta, desenvolvimento e integração de um serzinho à vida? Responda rápido: você conhece a si mesmo? Está desenvolvido na medida? Integrado à vida como gostaria? Sabe nos dizer qual foi – ou é – seu verdadeiro cronograma de vida? Seu verdadeiro destino? Percebe se aqui ou ali segue um cronograma equivocado?

Desculpe, não responda rápido; responda com vagar. Leve o mês de dezembro para isto. Fim de ano, bom momento para reavaliações.

O Projeto de Gente faz seu tradicional recesso seguindo as férias escolares. Estaremos também, podem acreditar, em processo de reavaliação.

Em 2010, teremos, pelo menos uma novidade: durante as férias, este verão mais longas, teremos atividades uma vez por semana no Projeto. Será uma forma de manter contato mais próximo com a moçada que apenas voltará ao Projeto – e às aulas – em março.

Pelo terceiro ano consecutivo, saudações cumuruxatibenses e projeteanas! Um belo fim de ano repleto de reavaliações e muita coragem!

outubro de 2009

Diários de Cumuruxatiba
Outubro de 2009



No mês de outubro, realizamos os II Jogos do Projeto de Gente. As modalidades, tabelas e regras foram combinadas em muitas Rodas de Conversação. As medalhas foram confeccionadas na Oficina de arte da Eliana. Foram feitas de argila pelas mãos das próprias crianças, queimadas no forno da artista e, depois, pintadas nas cores do Projeto. Desta vez foi preciso realizar as competições durante os fins de semana, uma vez que, este ano, temos meninos e meninas em dois turnos. Assim, haviam times de jogos coletivos constituídos por gente da manhã e da tarde.

Toda a competição foi marcada pelas chuvas intensas que desabaram sobre a vila. Tivemos que adiar por, pelo menos, dois fins de semana os jogos. Claro que se dependesse da moçada a chuva não atrapalhava nada; porém, todos sabiam que muitos pais e mães iriam certamente nos escabrear. Decisão muxoxenta: adiar.

Como sempre, pudemos observar que, dado que “valiam medalha”, os jogos eram levados muito mais a sério do que no dia a dia de nossas atividades. Jogos que, comumente, duram 10 minutos, chegavam a durar 50, 60. Lances que, comumente, não eram discutidos, geravam dúvidas e muita conversa. Continuamos com a regra dos I Jogos: “nas competições não existe a figura do juiz, pois ninguém pretende trapacear”. A Cristina conversou sobre a diferença entre uma certa malícia inerente aos jogos e a trapaça propriamente dita. Foi mantida também a figura do observador que, quando solicitado, dizia o que havia visto – não era, portanto, um juiz.

Aqui estão as modalidades e os vencedores dos II Jogos do Projeto de Gente:

1.Xadrez – Degenan
2.Gamão – Sulamita
3.Dominó – Sulamita
4.Damas – neste momento ainda estamos conversando sobre o que fazer já que um dos finalistas, o Robson, precisou mudar-se da vila.
5.Soletrando – Ioane
6.Tabuada – Ioane
7.Queimada Brasil – Time C: Douglas Costa, Sol, Ismael, Sulamita, Cleiton, Alexandra e Olívia
8.Queimada Suiça – (faz parte de um projeto de brincadeiras do mundo; neste caso, a Alexandra - filha de um suiço (o Walter) e de uma angolana (a Dolores) – trouxe as regras) Time: Sulamita, Allan, Ismael, Luli, Bruno e Abimael.
9.Bandeirola – Allan, Weber, Bruno, Ricardo, Sulamita
10.Cinco Cortes – Allan e César
11.Vôlei de Praia – Ioane e Sol
12.Vôlei com 4 jogadores – Ioane, Douglas Costa, Ornan, Stefany
13.Vôlei com 01 jogador – Ioane
14.Futebol de dedo (peteleco) – Bruno
15.Futebol de Botão – Cleiton
16.Futebol de Areia – Cleiton, Bruno e Ricardo
17.Cordão – Ricardo
18.Cabo de Guerra – Douglas, Ornan, Sulamita, Mavila, Abimael
19.Peteca – Bruno e Cleiton
20.Corrida Simples – 3 categorias: Abimael, Mavila e Cleiton (vale dizer, três irmãos velocistas)
21.Corrida com Ovo – Cleiton
22.Salto em Distância – 3 categorias: Ricardo, Ana Paula e, empatados, Olívia e Abimael
23.Salto Triplo – 3 categorias: Ricardo, Olívia e Mavila
24.Torneio de Tirar Salto – Xaropinho

Estamos organizando a festa para a entrega das medalhas e que, provavelmente, será também uma comemoração de encerramento das atividades do ano. As escolas entram em férias na primeira semana de dezembro. Adiantando um ponto, estamos, este ano, tentando organizar uma atividade semanal durante as férias (provavelmente em torno do blog e alguns torneios de jogos – gamão, peteca, etc.

Este mês foi concretizada a compra de um computador portátil e um mini-modem (este vai chegar em novembro) que vão dinamizar as comunicações do Projeto com o mundo e também fortalecer a oficina de informática da Cristina. Esta compra foi possível graças a um baita esforço realizado pela Associação Projeto de Gente, lá no Rio de Janeiro. A Cristina, a Fátima, o Jorge e o João fizeram uma espetacular campanha e arrecadaram uma quantia que, além de comprar o lap-top, possibilitou a continuação do processo de qualificação da Associação como uma OSCIP. No demonstrativo financeiro estão – ou estarão proximamente – as planilhas da campanha e, também nos blogs, os nossos agradecimentos – aqui renovados – a todos que trabalharam na campanha e a todos que contribuíram financeiramente. Muito, muito obrigado!

Até novembro!

setembro de 2009

Diários de Cumuruxatiba
Setembro de 2009

Outro dia, em uma conversa, alguém se referiu a Cumuruxatiba como um grotão - “Aqui neste grotão acontecem coisas que não acontecem em outros lugares...”. Esta pessoa estava se referindo ao nosso distanciamento quilométrico dos grandes centros onde, aparentemente, acontecem as coisas que verdadeiramente movimentam o país. O grotão, portanto, parece ser um lugar onde o que quer que aconteça não é relevante para o país.

Cumuruxatiba: um pequeno distrito de um município de um estado brasileiro, um grotão dentro do país. Entretanto, aqui acontecem, por exemplo, eleições; existem instituições (posto de saúde e escola, outros exemplos) regidas pela constituição do Brasil; e, também aqui, vivem pessoas – crianças, jovens, adultos, idosos – que adoecem, vão às escolas, submetem-se às provas do IDEC, do ENEM, dos vestibulares, trabalham, casam, têm filhos e filhas, são filhos e filhas, sentem medos, carecem de alimentos e água pura; enfim, gente, pura e simplesmente gente. Gente pura e simples, gente impura e muito complicada, gente honesta, gente desonesta. Cumuruxatiba: um lugar como outro qualquer, único e igual a todos no país e no mundo; um corpo social, como qualquer outro, formado por corpos individuais, isto é, por pessoas singulares e iguais a todas as outras.

Otávio Velho levanta a hipótese, sociológica, de que “por trás da teoria dos grotões (…) oculta-se (…) o receio da autonomia de movimentos e pessoas”. (Carta Capital, 27/12/06, pg.27). E continua: “autonomia que ameaça os pequenos mundos dos condomínios...” e que, por isto, “resistem ferozmente contra as ações afirmativas que permitam uma reparação em favor de grupos (…) desfavorecidos”.

O grupo desfavorecido com o qual trabalhamos são os meninos e meninas. E porque seria este grupo desfavorecido? Será que os adultos estão realmente atentos ao que devem oferecer para que cada criança receba o que de fato ela precisa para ser quem ela é, espontânea e feliz? Será que estão cuidando da alma de cada criança para que ela, como diz Thomas Moore, de fato prospere? Será que, no final das contas, ao oferecer o que tradicionalmente oferecem às crianças, procuram mesmo é se sentirem apaziguados? Porém, apaziguados no sentido de que, assim, elas – as crianças – provavelmente não irão confrontar cada adulto com sua própria fuga de si mesma?

O Projeto de Gente tenta trabalhar estas questões ao buscar, em cada um de nós, a consciência de que cada menino e menina tem sua vocação pessoal e intransferível. Que têm o direito de manifestá-la e, mesmo não a conhecendo completamente, nós adultos, podemos, pelo menos, estar atentos para diminuir os obstáculos à sua manifestação e desenvolvimento. E, claro, aproveitar o mesmo campo para seguir em nossa contínua busca de reencontro com nossa própria vocação vital – isto significa nos ombrear às crianças.

Os trabalhadores do Projeto de Gente não devem se esquecer de que "as crianças tentam viver duas vidas de uma só vez, aquela com a qual nasceram e a do ambiente e das pessoas que as cercam", como escreveu James Hilmann. Pessoas e ambientes por um longo tempo tão importantes para as crianças que significam, para elas, a possibilidade de vida ou de morte – embora, pessoas e ambientes nem sempre atentos ao que elas, crianças, precisam para se sentirem plenamente vivas. Infelizmente, com mais ou menos consciência, com mais ou menos carinho, a maioria destas pessoas e ambientes organizam, não um natural campo de possibilidades (um poder ser) no qual as crianças possam descobrir a si mesmas e, assim, descobrir os caminhos de sua felicidade. Organizam sim um lugar com placas de direções tão estritas, com penalidades tão rigorosas aos que ousarem escolher outros rumos que, sufocantemente, quase determinam a rota a ser seguida.

O Projeto de Gente pretende ser um espaço onde cada criança possa se observar enquanto observa o mundo que cria, o próprio Projeto de Gente – sem medos ou ameaças. Este é o foco do trabalho: que o processo de individuação aconteça naturalmente durante as pequenas vivência cotidianas. Esta é a meta: que o Projeto seja um planeta, um país alternativo onde isto possa acontecer. Um país que não quer mudar qualquer vizinho, que deseja apenas exercer sua autonomia, isto é, o direito de desenvolver sua própria e efetiva legitimidade.

A maior parte do que falei até aqui é intangível aos que apenas se aproximam da casa do Projeto de Gente. Invisível aos que não se aprofundam nos fundamentos de nosso trabalho. Entretanto, não devemos abrir mão destes aspectos mesmo sabendo que eles, muitas vezes, provocam reações mais ou menos conscientes. Ao contrário, com delicadeza e persistência precisamos ter tais aspectos sempre em mente e presentes em todas as atividades do dia a dia. Ao mesmo tempo, precisamos encontrar estratégias para alcançar recursos que vão possibilitar a formação de uma equipe coesa e trabalhando em tempo integral. Profissionais que, junto com os voluntários, estarão oferecendo suas habilidades pessoais e buscando alcançar as metas próprias ao Projeto.

Neste mês de setembro percebemos uma tendência de mudança na composição do grupo de meninos e meninas frequentadores do Projeto de Gente. Primeiro, uma diminuição no número de participantes; segundo, uma diminuição na idade média dos novos meninos e meninas que apareceram perguntando sobre a possibilidade de participar.

Alguns fatores foram também observados para explicar tais tendências. (1) Crianças com mal desempenho nas escolas e que – fim de ano, provas finais à vista – eram, então, proibidas de frequentar o Projeto. Procuramos alguns pais e mães lembrando que estas crianças poderiam estudar no próprio Projeto. Alguns passaram a levar trabalhos e estudo, porém, dependendo da condição econômica, alguns preferem colocar seus filhos nas “bancas”, aulas de reforço que, por conta do grotão em que vivemos, são os próprios professores das escolas. (2) Percebemos que, há dois anos atrás, os meninos e meninas que primeiro nos procuraram tinham, em média, 9, 10, 11 e 12 anos. Segundo o depoimento de um destes meninos, hoje com 13 anos, “agora a gente tem muitos outros interesses!”. Disse isto com um belo e discreto sorriso e um olhar meio de viés. De fato, o formato atual do trabalho privilegia a moçada de idade menor. As oficinas e atividades mais comuns – artes, jogos,etc – tendem a ser mais atraentes para os, vamos chamar assim, pequenos. Os maiores que seguem frequentando a sede do Projeto são exatamente aqueles que, com mais ou menos consciência, percebem as particularidades do Projeto de Gente. É também possível observar um certo ir e vir destes meninos e meninas adolescentes. É como se colocassem o vir ao Projeto junto aos tais outros interesses. (3) A bem vinda organização de outras atividades para a moçada: o teatro do Juan, o vôlei do Jeff, o futsal do Lúcio, a escola de vela do Aldo, Giorgio e Rogério. Além disso, o Curumimbatuque e a dança afro continuam em plena atividade. Claro que nem todos participam de tudo, mas, como nas cidades grandes, a agenda fica cheia, os interesses se organizam e o cansaço bate; além dos pais e mães, novamente, pressionarem para que as crianças tenham tempo para estudar as coisas da escola. Vale dizer que nada do item 3 é problema, pois existem crianças suficientes para até mesmo outros projetos.

Fiéis a um dos princípios básicos do trabalho não forçamos nada, apenas nos mantemos como campo receptivo. Achamos que é necessário aceitar este movimento, aproveitá-lo e, ao mesmo tempo, pensar em estratégias que possam envolver mais e mais os mais "velhinhos" e acolher a "2ª geração" do Projeto...

Diretamente de um grotão deste imenso Brasil, um grande abraço e até outubro!

Agosto de 2009

Diários de Cumuruxatiba
Agosto de 2009

Resolvemos comemorar o 2º ano de trabalho com a realização dos II Jogos do Projeto De Gente. Como ainda acontece, quando se pergunta quem quer participar da organização, todos querem; porém, na hora dos encontros tem sempre uma outra atividade atraente acontecendo – um jogo, uma conversa. Os encontros, portanto, acabam acontecendo com um número menor de pessoas, o que gera questões lá na frente: “Eu não sabia que ia ser assim!”... “É, mas isto aí foi decidido pelo grupo que estava na reunião e todo mundo já tinha concordado que quem estivesse decidia!”... “Ah! Mas eu não 'tava!”... “Och! Cê não entendeu nada então, num devia estar prestando atenção na hora que decidimos assim!”...

E assim, reveladas suas fragilidades, se constrói a democracia! Uma coisa fica clara: mais que o momento do voto, o que deve realmente configurar o espaço democrático é o momento da troca de ideias, o momento do debate, da conversa. Aí sim, garantida a livre manifestação e a escuta atenta, é que se constrói uma sociedade solidária, respeitosa e democrática.

Quanto tempo para que a moçada perceba que suas vozes serão escutadas aqui neste lugar? Que serão ouvidos e levados em conta, cada um, seja grande ou pequeno? Que a gente grande perceba que não tem poderes absolutos, e sim responsabilidades próprias de sua posição? Que, na maioria das vezes, não sabemos o que é melhor para o pequeno, a não ser que ele tenha a chance de manifestar o que lhe é melhor? Que o adulto tem voz e voto equivalentes a cada menina e menino? Equivalente, dissemos, não igual: a criança não é tratada como um adultinho, mas é uma pessoa com sua própria e legítima compreensão do que acontece à sua volta. Uma compreensão que vai se juntar à dos outros para compor o mosaico vital daquele grupo, daquele corpo social e que, por isto, merece toda atenção.

Este mês percebemos um menor fluxo de crianças. É como se houvesse passado a novidade, aquele lugar que tem tintas, lápis de cor, argila e de onde podemos sair e chegar à hora que quiser, já é conhecido. O apelo do mundo, dos modismos, das atitudes que “garantem” o lugar num grupo faz seu trabalho também. Principalmente os meninos sentem este apelo; é como se o Projeto fosse identificado como coisa de criança, um lugar para se brincar.

Naturalmente existem aqueles que vão compreendendo que existe alguma coisa diferente ali. Existem até mesmo os que se afastaram, mas retornaram sem se dar conta, de modo claro, de suas motivações. Ainda outro dia um educador, conversando com um menino (14 anos), percebeu que um certo acontecimento de meses atrás influenciou em sua decisão de frequentar novamente o Projeto de Gente. Há meses este rapaz estava lendo um livro da pequena biblioteca. Num certo capítulo ele encontrou uma situação que o emocionou muito. Esta situação pode ser, embora não integralmente, conversada com o educador. Porém, como frequentemente acontece com quem se depara com temas sutis e sensíveis – frequentemente assustadores –, ele se afastou (a famosa resistência nos movimentos terapêuticos). Alguns meses se passaram e ele, aos poucos, foi retomando contato com o Projeto: avisava que vinha, não vinha... Avisava que vinha, não vinha... Avisava... Uma brincadeira começou a acontecer entre o educador e o menino. “Eu vou lá amanhã!”... “Eu sei que você vai. Só não sei se é amanhã!” Um dia, veio e está vindo, ainda um tanto irregularmente, mas vindo

A equipe de trabalho é pequena. Apenas a oficina de informática – da Cristina – e a de arte – da Eliana – estão efetivamente organizadas. A Ângela também vem uma vez na semana para dar um apoio. O Shal conseguiu um trabalho na escola e o tempo ficou curto para ele em relação ao Projeto. Nos defrontamos com a velha e conhecidíssima questão sobre voluntariado: apenas a vontade e o entusiasmo não sustentam um colaborador no trabalho. Ele precisa “ganhar” a vida e então o emprego se impõe.

No momento em que estamos, do tamanho que somos, na casa em que estamos alojados, seria ótimo se o Projeto de Gente tivesse mais um funcionário em tempo integral. Duas pessoas poderiam criar uma rede de atenção e cuidado cotidiano. Um exemplo disto: em um dia – 3ª feira - da oficina de arte oferecida pela Eliana, a Jaqueline – uma amiga do Projeto – trouxe 4 crianças para passar o dia com a gente. Pois bem, ela ficou durante a tarde e se envolveu nas atividades com outras crianças que não estavam na oficina. Bastou este movimento da Jaqueline para que o outro educador tivesse uma disponibilidade visivelmente maior para cuidar de situações que surgiram. Em um dia comum ele certamente, não teria este tempo e possibilidade.

Além disto, dois trabalhadores poderiam manter mais vivos e ativos os conceitos do trabalho que carecem de atenção a pequenos detalhes que os meninos e meninas revelam, por exemplo, em um jogo de bola ou gamão. Trocas também mais efetivas poderiam ser realizadas entre estes dois observadores do cotidiano. Embora as oficina de arte e informática sejam frequentadas por um bom número de pessoas, existem as que não se interessam por estes temas ou tenham presença ocasional. Nestes casos a atenção possível da Cristina e da Eliana ficam, naturalmente, limitadas.

Outra situação que deixou estas questões bem à vista: o único educador em tempo integral precisou viajar – ou melhor, desejou e seu desejo foi acolhido por todos: gente grande e pequena. Porém, durante a semana desta viagem foi deliberado que seria melhor não abrir as portas do Projeto. Ora, este trabalho não pode depender, nem um dia sequer, de uma única pessoa. Entretanto, também ficou claro que, neste momento, não temos uma equipe em número (não em qualidade) suficiente para cuidar das crianças numa circunstância como esta.

Aí está um de nossos propósitos mais urgentes: ampliar a equipe. Como sempre dizemos, primeiro precisamos de gente; depois, de gente; aí então, mais gente; e, só depois,... gente...

Um grande abraço, gente!

Julho/2009

Diários de Cumuruxatiba

Julho de 2009


Julho traz a sensação de conclusão de um ciclo. O Projeto de Gente está há dias de completar seu 2º ano de existência em Cumuruxatiba. É difícil escapar do impulso de realizar uma retrospectiva, um inventário de perdas e ganhos.


Desde quando o Projeto de Gente tem vida e existência? Resposta: Desde quando alguém teve uma ideia inicial? Desde quando um grupo de pessoas se reuniu para pensar, sentir o Projeto? Desde quando alguém veio para Cumuruxatiba apresentar os conceitos do trabalho? Desde quando a 1ª criança entrou na casa do Morro do Cantagalo? Como se vê, nenhuma afirmação e assim vamos seguindo em frente.


Jung disse que o ser humano, quando se defronta com algo, usa seu aparato sensorial: vê, toca, cheira, sente o gosto, percebe que algo existe; depois, pensa, reflete sobre o que viu, tocou, cheirou e pergunta-se: “o que é este algo?”, “para que ele me serve?”; finalmente, tem um sentimento sobre este algo: “gosto disto?”, “não gosto?”; de posse destes elementos o ser humano age: acolhe, rejeita, ou realiza qualquer outro movimento. Jung também disse que a intuição também faz parte desta equação. Muitas vezes sem tocar, ver, ouvir, etc, misteriosamente, uma pessoa “sente”, intui sobre algo, reflete sobre ele, tem um sentimento e age.


Os trabalhadores do Projeto de Gente, no primeiro momento, não tinham nada para tocar, ver ou cheirar; tinham uma espécie de intuição, uma crença. Porém, acreditaram no que intuíram, creram, apesar de não terem uma casa nem uma metodologia experimentada. Não tinham, enfim, existência aparente. Entretanto, já viviam algo; viviam e buscaram – buscam – existir. De fato, exigem o direito de existir, exigem que sua legitimidade seja reconhecida. Como qualquer menino e menina, que agora dele participam, exige o direito de existir tal como é. Desejam viver sua existência em consonância com suas crenças, querem viver como acreditam, existir como acreditam, querem ser e existir sem esquizoidia.


Tentamos construir este lugar – o Projeto de Gente – em contato estreito (dentro mesmo, fazendo parte) com um outro lugar: uma estrutura social, também chamada de “realidade”. Esta estrutura, por sua vez, é constituída, majoritariamente, por pessoas que não existem como realmente (ironia!) desejam, não vivem como realmente desejam, não fazem em seu cotidiano o que realmente desejam, não são quem realmente são. Compõem, portanto, uma esquizoide e ilusória sociedade. Ilusória, porém legitimada, o que lhe dá contorno de realidade. Tão poderoso é este contorno, tão bem guardada é esta fronteira que qualquer um, esteja onde estiver, é observado de acordo com suas leis e por elas julgado e condenado.


Um exemplo do encontro – choque – entre duas estruturas como as que descrevemos pode ser visto no contato dos brancos europeus e os negros do sul da África. Os europeus, segundo diz Hannah Arendt, mais, muito mais, do que a cor da pele se sentiram chocados ao perceberem, com maior ou menor consciência, como aquele povo se comportava como se fizessem parte da natureza. Para eles, europeus, era realmente “como se”, isto é, uma ilusão. Pare eles, os verdadeiros seres humanos estavam acima, no comando, dominando a natureza. Não se deram conta, pois não poderiam, de que a verdadeira ilusão havia sido construída por eles, os civilizados brancos. Na verdade,é seguro que, em algum ponto – um oculto ponto – perceberam, tanto que, assustados com aquele comportamento, consideraram aqueles negros estranhos à espécie humana, julgaram-nos como subversivos e os condenaram a serem “coisas” que podiam ser usadas de acordo com o mesmo critério que os autorizava a usar a madeira de uma árvore como um mero recurso a ser explorado em prol dos seres, estes sim, superiores. “Superiores” porque separados da natureza, porque “Senhores” da natureza. Seres fragmentados que separaram-se exatamente para, pretensa e ilusoriamente, colocarem-se acima, pois sentiam-se ameaçados, assustados com o apelo da vida dentro de cada um. Separaram-se da Natureza e fragmentaram-se também a si mesmos, um por um, cada um, organizando-se, deste modo, desvinculados da existência plena. Forjaram-se seres sem autonomia, pois não eram mais quem de fato eram, não atendiam mais seu próprio “grito vocacional”, não atendiam mais à sua própria legalidade, criaram, então, padrões, a serem seguidos, padrões externos, visíveis, chamados materiais – parte da unidade vital, agora confundida com a totalidade. Reconhecendo apenas padrões, separam-se: um povo do outro, uma crença da outra, cada um de cada um. Separam-se e constroem altos muros, vigiam brutalmente suas fronteiras.


Tudo que, no parágrafo acima, foi escrito no passado deve ser lido também no presente


Mas, vamos voltar ao inventário: dois anos depois de chegar a Cumuruxatiba o Projeto de Gente é visível, tem existência, pessoas veem sua sede, conhecem as crianças que o frequentam, têm ideias a respeito, têm sentimentos sobre seus conceitos – muitas vezes mesmo sem entendê-los muito bem. Com maior ou menor consciência se perguntam sobre o que o Projeto de Gente traz para seus filhos e filhas. Perguntam-se: por causa do Projeto eles vão ter menos dificuldade na escola?, vão passar de ano mais facilmente?, vão aprender uma nova língua?, vão ter sua entrada no mercado de trabalho facilidada?, vão ter mais disciplina para cumprir suas obrigações?, vão ter ajuda para fazer seus “para casa”?, não vão precisar mais de “banca” (aulas particulares)? Perguntam o que a tal realidade lhes impõe.


Mas, o que o Projeto de Gente pretende? Ser aceito pelos resultados que o paradigma dominante afirma? Ser reconhecido como um lugar onde os meninos e meninas vão e se tornam os melhores alunos em suas escolas? Os mais comportados? Os que obtêm melhores performances nos vestibulares? Certamente que sim, este é um propósito do Projeto de Gente, porém, se - e só se - estes forem os caminhos que realmente alguns meninos e meninas desejam seguir.


O Projeto de Gente existe e trabalha para que os meninos e meninas percebam que podem, mais que podem, têm o direito de seguir um caminho que junte o ser e o existir de cada um deles; que cada um pode, mais que pode, tem o direito de manifestar-se de acordo com o misterioso ser que vibra – e emana estas vibrações – em sua intimidade; que podem, têm o direito de se ver como parte do mundo natural; que podem, assim, recuperar sua autonomia. Para isto é preciso que não precisem seguir tantos “tenho que...”, “tenho que, senão...”.


Há poucos dias, um educador do Projeto, conversando com algumas crianças concluiu, junto com elas, que estavam agindo, em uma certa situação, exatamente como não desejavam. “A gente quer mesmo que as coisas sejam assim?... Não, claro que não!... E assim?... Claro que não!... Então, porque será que a gente acaba fazendo como não deseja?...” Vários lembraram que todo mundo sabe que fumar faz mal à saúde, que não se deve poluir a água porque ela vai acabar mesmo, que não se deve desmatar ou fazer queimadas de qualquer jeito. Ficaram ali, meio em silêncio, sem ter uma resposta clara sobre o porque agimos tantas vezes como não desejamos.


Uma parte da resposta talvez seja: agimos assim porque não queremos arriscar nossa pretensa superioridade, nossa pretensa segurança. Abrimos mão de nossa autonomia porque ela nos coloca em diálogo íntimo, profundamente íntimo, com a Natureza. E, neste diálogo, descobrimos que não somos superiores, descobrimos que seguimos leis que desconhecemos. Descobrimos que nossa autonomia, isto é, nossa “capacidade de especificar e manifestar nossa própria legalidade, aquilo que nos é próprio” deve, necessariamente, incluir a plena interdependência entre todos os seres que, juntos e igualmente importantes, compõem a natureza. Então, apavorados, não queremos ser íntimos da Natureza, queremos ditar as leis. Assim, só nos resta um caminho: ser sempre e cada vez mais, compulsivamente, superiores, acima, no topo do que não tem topo.


Aí esta, portanto, a crença que os trabalhadores do Projeto de Gente não podem perder de vista: oferecer campo, livre, no qual os meninos e meninas possam observar a si e ao mundo – o que criam e o que está à sua volta –, onde possam perceber sua legalidade, e a forma mais harmônica de vincularem-se, autônomos, ao mundo. No Projeto de Gente eles podem olhar para si mesmos e mostrar o que veem sem receio de não serem aceitos. Para isto usamos o jogo de queimada, o dos 5 cortes, a oficina de argila, de artes e a de informática, também durante a conversa enquanto se joga gamão ou xadrez, na hora do lanche ou num papo debaixo da árvore.


A maioria dos projetos relacionados à criança e ao adolescente têm objetivos visíveis e facilmente apreendidos. Ótimo, embora possamos fazer alguns comentários sobre como, muitas vezes, uma ilusão está sendo criada ao se esperar que dali saia um futuro campeão com sucesso, fama e dinheiro garantidos – embora, nem sempre felizes. O Projeto de Gente, por sua vez, tem também um objetivo – principal e central – que não apenas é invisível, é também, muitas vezes, indesejável por um grande número de pessoas: ser uma usina de autonomia, de liberdade. Liberdade que não implica em fazer simplesmente o que se quer, mas sim fazer o que se quer junto, ao outro, com o outro, às claras. As ferramentas que usamos – oficinas, projetos de saber variados – são importantes por si mesmas, porém são ferramentas cuja função primordial é, como já dito e redito, propiciar contato da criança consigo mesmo e com o mundo que ela ajuda a construir; ferramentas que geram senso crítico e harmonia; percepção de alternativas mais próximas de sua própria legalidade, de seu direito de ser e existir na rede da vida.


O Projeto de Gente precisa de mais gente, de mais paciência, de mais força e mais coragem para não se exigir estar no lugar do qual ainda está longe. Encontrar força para mostrar – muito também para os adultos que dele participam – que um velho vício, tão velho que nem é mais percebido como vício e sim como uma atitude normal (o normal confundido com o mais comum, a ilusão com fôro de verdade porque tantas vezes repetida), que este vício, repetimos, pode ser desconstruído, lentamente desconstruído, que o que o motivou pode ser percebido de outra maneira e que, então, uma outra estrutura pode ser erguida. Não mais uma estrutura destoante e distante do núcleo, da fonte de cada um que a constitui, de cada pessoa tão única, tão semelhante a todos os outros; e sim, uma estrutura que não esconde a sensibilidade, o medo de cada um é (medo que, escondido, apenas aumente e exige mais e mais defesas).


A cada dia nós, trabalhadores do Projeto, somos confrontados com nossos próprios fantasmas, nossos medos, incluindo o de não sermos aceitos pelo que é considerado real e legítimo.


Até o mês que vem!