segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Diários de Cumuruxatiba - Julho/2011


Mês pequenino, apenas 15 dias de atividades. Vamos aproveitar, então, para falar de pessoas. Pessoas que chegaram para somar, multiplicar – embora um deles seja engenheiro e, certamente, vai colaborar nas subtrações e divisões.

São eles: Gabriela, Juliana, Leonardo, Luiz Claudio e Cecília.

No último diário – maio, junho – fizemos uma menção ao casal Juliana-Leonardo. Eles estão em Cumuruxatiba cuidando de uma pousada: a Aquarela. Neste verão de 2011, a pousada já começou a ter novo sobrenome, graças ao restaurante de massas que os pais de Leonardo organizaram e a delicadeza de todos que lá trabalham. Desde que chegaram a Cumuruxatiba, Leonardo e Juliana já mostraram ser pessoas muito especiais: calmos, atenciosos, inteligentes, alegres, sensíveis, amigos dos animais. O pessoal do Projeto de Gente pode se aproximar deles e a amizade foi nascendo, firme. Para nossa alegria, um dia, eles trouxeram a proposta de dedicar alguns dias de trabalho voluntariado ao Projeto. Além disto, propuseram um apoio financeiro: uma quantia da diária de cada hóspede é destinada ao Projeto. Rapidamente estávamos, juntos, reformulando o blog, criando Projetos de Saber – origami, observação de pássaros, jardins suspensos. E, acima de tudo, eles se aproximarem das crianças com extremo cuidado, atenção e carinho. Estamos todos muito felizes com a colaboração destes – já – velhos amigos.

O Luiz Cláudio, conhecido por nós durante o curso de formação em educação democrática, veio este ano a Cumuruxatiba. Ficou conosco poucos dias, mas marcou de variadas maneiras sua passagem. Inteligente, sagaz, sempre com uma perspectiva inovadora; no primeiro dia já estava interagindo com a moçada como se fizesse parte desde sempre da Vila-Escola. Logo de cara pode usar suas habilidades e conhecimentos, pois estávamos, naquele momento, nos perguntando sobre como corrigir os textos dos livros que os meninos e meninas estavam produzindo. Começava que havia uma questão primária: “o que é um erro mesmo?”. Se eu entendo o que o outro quis dizer, posso dizer que está errado? O que é mesmo a tal norma culta? Ela tem que ser sempre seguida? E o Guimarães Rosa, errava quando inventava uma palavra “maluca”? Mas é legal que se escreva de uma maneira combinada por todos para que todos entendam o que se quis dizer, disse alguém. O que é corrigir? Enfim, questões! A decisão – consensual e depois de muita conversa – foi: quem quisesse se sentaria com o Luiz e conversariam sobre seus textos e, também quem quisesse, poderia escrever uma errata que seria colocada, como num envelope, no fim do livro. Conversamos muito sobre educação, problemas da vila-escola, das escolas, das relações entre escola-estudantes-família. Enfim, usamos e abusamos de nosso amigo.

A Gabriela, amiga recente, já chegou botando pra quebrar. Ela é jornalista e, de cara, propos uma Oficina de Fanzine. Em um dia, na verdade, em poucas horas, a Vila-Escola estava transmutada em Redação de um velho jornal. Reunião de pauta, produção dos textos – com a “linha fatal” para entrega dos textos e ilustrações –, diagramação e tudo mais. Correria na Bahia! No final: tudo certo! Tínhamos o primeiro número do fanzine “MARÉ DE NOTÍCIAS”. Brevemente nas ruas! Gabriela ganhou medalha e tudo! Também se transformou em nossa Editora-Chefe-Não-Importa-Onde-Esteja, pois, infelizmente, a Gabi mora em Ribeirão Preto. Mas, tem nada não!, nada que nossa equipe de informática não possa aproximar. Obrigado, Gabi! Foi muito emocionante e gratificante  sentir seu envolvimento com a Vila-Escola.

A Cecília também esteve conosco por ralíssimos 3 dias. Felizmente conseguimos fazer um lanche para recebê-la; além do lanche o pessoal da flauta fez uma apresentação meio improvisada, mas carregada de carinho. Acho que vamos conseguir ilustrar esta edição do diário de julho com algumas fotos e, quem sabe, vídeo deste dia. A Cecília vai nos matar de saudades, pois passará uma temporada de estudos em Paris. Trés chique, n’est pas? Felicidades e muita coisa boa procê, querida amiga!

Também em julho fizemos nossa Assembleia. Decidimos questões importantes: reajuste salariais – houve aumento para a Ana, a Isabel e para o Alexandre –, novos horários para o 2º semestre (este item foi conversado em um momento posterior), conversamos sobre o tanto de temas que devem ser melhorados – reuniões, contato vila-escola-famílias, etc.

Agora, 15 dias de férias e retomada das atividades em 01 de agosto.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Diários de Cumuruxatiba - maio/junho de 2011 - estamos quase em dia!!!

O caminhão da mudança chegou no novo lar
Como vimos nos “diários de março-abril”, muitas conversas existiram antes da decisão sobre esta mudança. Porém, apesar destas conversações, algumas dúvidas permaneceram: algumas naturais, isto é, apenas serão respondidas no decorrer dos novos acontecimentos no novo cenário; outras porque opiniões e estratégias preferidas são mesmo diferentes entre uns e outros; ainda existe o fato de que a posição específica destes uns e outros faz com que a visão dos acontecimentos seja, de certo modo, particularizada, isto é, os que estão no cotidiano prático veem questões impossíveis de serem percebidas pelos que, não estando neste cotidiano, labutam em outros campos do mesmo trabalho.
Como, em nosso caso, existe um número importante de pessoas que apoiam voluntariamente o trabalho, é preciso ter sempre em mente que as variadas perspectivas sobre o desenvolvimento do trabalho devem se complementar, compartilhadas, para que se organize uma unidade harmônica. Para que isto aconteça é necessário que exista uma grande abertura nos espíritos e também grande confiança entre os indivíduos do grupo. Além disto, é necessário muita conversa, sempre dentro deste espírito de cumplicidade. Assim, com naturalidade, poderão ser compartilhadas as visões, as compreensões e as posições de pessoas em suas particulares situações e particulares habilidades e experiências – o  que lhes permite ver, sentir e pensar sobre particulares questões e acontecimentos diários.
Este caminho é percorrido com algumas dificuldades, pois demanda bastante trabalho. Um trabalho que apenas pode ser realizado por cada caminhante. Os obstáculos são variados e surgem, muitas vezes, quando menos se espera. Embora alguns destes obstáculos já fossem esperados, mesmo assim, exigem vitalidade e persistência para serem superados. Além disso, e talvez o mais importante, cada obstáculo tem peso diferente para cada membro da tripulação de nosso barco. É preciso esperar até que aquele membro compreenda a sua questão, perceba sua sensibilidade pessoal em relação àquele ponto. Esperar e aceitar sua decisão, pois tanto ele pode ultrapassar o tal obstáculo quanto decidir manter-se parado naquele ponto; pode, até mesmo, reagir e colocar-se contra a direção do caminho. Nenhum dos outros tripulantes pode julgar e condenar aquele; devem mesmo abrir espaço dentro de si mesmos para confirmar a direção apontada por sua própria bússola.
Pois bem, a mudança chegou! Novo espaço, novas ideias; na verdade, novas estratégias, pois a alma de nosso trabalho segue firme e forte: “O Projeto de Gente chama atenção para a imensa responsabilidade dos adultos, que devem oferecer campo adequado para que suas crianças tenham a mais ampla possibilidade de conhecer e respeitar a si próprias. Esta possibilidade permite o reconhecimento do amor-próprio que alimenta a própria individuação e a construção de uma serena auto-estima, bases completamente necessárias para o exercício do respeito ao outro e do direito de ser singular e incluído socialmente”. Incluído socialmente, vale dizer, em uma sociedade pautada, deste modo, para a justiça e inclusão. Naturais justiça e inclusão.
Seguimos percebendo que, como disse James Hillman, de modo simples e claro: ”...para se entender a vida humana (não podemos) omitir algo essencial: a particularidade que você sente que é você.” 
O que disse Ingmar Bergman continua valendo para nós: “Nós somos sentimentalmente analfabetos. E esse é um fato lamentável que não diz respeito apenas a você e a mim, mas sim praticamente a todo mundo. Nós não aprendemos nada sobre a alma. Somos terrivelmente incompetentes tanto sobre nós próprios como sobre os outros. Ninguém tem a idéia de que precisamos aprender algo a respeito de nós mesmos e de nossos sentimentos. A respeito de nossos medos, de nossa solidão, de nossos ódios. Nesse ponto estamos perdidos, incapazes... Como é que vamos compreender os outros se nada sabemos a respeito de nós mesmos?” 
Tudo que está entre aspas foi escrito – ou “colado” do Hillman e Bergman –, pela primeira tripulação desta barcarola, em 2003.
Mas, vamos voltar à mudança. Descarregado o caminhão, impera uma certa bagunça: caixas para todo lado, objetos perdidos, coisas sobre coisas, onde está isto?, e aquilo? Confusão, confusão e medo,... muito medo. Será que as coisas vão entrar nos eixos? Dúvidas.
E aí vale muito o ensinamento do Nego e do Mujinha, nossos amigos pescadores. Certo dia, em 2007, eles me explicaram que velejar nas canoas de Cumuruxatiba – duas velas e dois mastros separados – era bastante difícil e trabalhoso, mas compensado pelo fato de sempre ser possível arrumar as velas de modo a seguir, mesmo que mais lentamente e com mais esforço, na direção desejada. Isto é, exceto na calmaria total, sempre é possível ter a meta na ponta da agulha, sempre é possível manter o norte – ou o seu ponto cardeal ansiado – em frente. Nada de ficar reclamando do vento que, não sendo o seu preferido, deve estar tocando outro barco com mais facilidade.
Pois bem, com tudo isto em mente e circulando por nossas veias, fomos tentando acertar o rumo. Como o grupo de meninos e meninas vai se organizar? Como vai se fazer a agenda do dia a dia? Não vai haver nenhuma? Como encaixar o desejo de uns brincarem com a atividade eventualmente concentrada de outros? Quem “ganha”?
Dizem que “o tempo é o senhor da questão”. Pois bem, não concordamos inteiramente, pois este ditado pode nos levar a um estado ilusório, pode nos manter sem movimento, esperando a tal ação do tempo. Ora (ou devia ser “hora” – já que estamos falando de tempo!), o tempo do relógio não existe em si, foi inventado por nós. O que quer que aconteça acontece na comunhão de ações. Ações de seres animados de variadas formas – desde a alardeada consciência dos humanos até a consciência da mais pequenina partícula conhecida dentro de um átomo (e alguém vai dizer neste momento: átomo não tem consciência!).
Vale lembrar que, no mínimo, devemos levantar uma questão: quem é mais sábio? A mangueira, o coqueiro, a pitangueira que sabem o que querem e aceitam as condições à sua volta para trazer seu fruto ou o ser humano mergulhado em velhas dúvidas – quem sou?, oncotô?, proncovô? – e sempre culpando o outro (foi Eva!... foi a serpente!... já disseram a mítica avó e o mítico avô!... talvez eles não tenham ensinado o melhor caminho; porém, certamente, apontaram para onde não ir! Ensinaram a negar sua sensibilidade própria, negar suas ações, ensinaram a mentir. E, pior que tudo, mentir para si mesmos, pois, uma hipótese, é a de que Deus representasse algo maior, mais abrangente, deles mesmos. Assim, mentiram para si mesmos. Infelizmente parece que tomamos isto como lição e, deste modo, organizamos nossa sociedade e nosso contato com a natureza – afastada de nós que nos afastamos de nossa própria.)? (nossa, o ponto de interrogação ficou longe! Olha só, como devemos estar atentos!... hehehe)
Pois bem, desde março vamos navegando nestas águas. Neste momento, junho, ainda temos muito mais questões para resolver do que resolvidas. Porém, algo avançou.
Muitos Projetos de Saber foram criados, a saber: (1) produção de livros – histórias e ilustrações coletivas e individuais –; (2) uma revista digital sobre o espaço sideral; (3) observação de pássaros – com atenção quanto a maneira de registrar as espécies –; (4) leitura de livros – um em voz alta (a “Ilha do Tesouro”, de Robert Louis Stevenson, que gerou o início de criação de uma peça de teatro a ser apresentada em agosto –; (5) oficina de origami – vai ser repetida periodicamente –; (5) uma equipe reativou o blog; (6) estudo sobre dinossauros – que evoluiu para os livros e para início de estudo do sistema métrico; (7) seguiu a aula de flauta com o Mestre Dema – agora ele vem de 15 em 15 dias; porém, chega na terça-feira, às 15hs e fica até a quarta-feira, 17hs; (8) projetos pessoais são possíveis: o tempo de estudo de violão do André, e as necessidades dos meninos e meninas quanto a outra escola (provas ou trabalhos), são bons exemplos.
O grupo foi se formando. Aos poucos foram percebendo, no dia a dia, o que havia sido conversado nos meses anteriores.
Agora temos um caderno de presença: cada um chega na sua hora, marca e assina; um sinal de compromisso, não de obrigação. As rodas estão organizadas: sempre na segunda-feira e, se necessário, alguma extraordinária. Assembleias também regularizadas. Os Projetos de Saber estão também organizados levando-se em consideração as possibilidades dos estudantes e dos orientadores. Nas rodas foram tomando forma combinações variadas: por ex, não se pode brincar de correria e gritos quando um grupo – ou uma pessoa – precisa se concentrar (nosso espaço físico é muito bacana, mas exige este cuidado). Procuramos, nestas rodas, chegar ao consenso para não haver um grupo vencedor; conversamos bastante – o que não é muito fácil para a maioria, desacostumados a ter a voz ouvida.
Como dissemos acima, a maioria de nossas crianças estão frequentando a Escola Municipal e a Vila-Escola ao mesmo tempo. Isto foi um achado de um dos meninos – o Peterson. Ele perguntou se isto seria possível, pois sentia que seu pai precisava ganhar confiança neste sistema novo. Foi uma verdadeira luz que se acendeu para todos nós. Claro que os pais e mães precisavam deste tempo. Na Vila de Cumuruxatiba, quem quer que tenha frequentado a escola, o fez nas escolas Municipais. De todo modo esta é a referência! Precisamos mesmo deste tempo – todos precisamos! Assim, acolhemos as necessidades atuais de nossas crianças. Se, por acaso, é a necessidade de estudar para uma prova na Escola Municipal, muito bem, nenhum problema. Na verdade usamos esta necessidade para trazer, de modo diferente, um novo conhecimento. Aliás, muitos estudos – sobre o cangaço, por ex – foram iniciados a partir desta situação. Em tempo, não mencionamos o cangaço lá em cima, pois este foi um estudo focal; isto é, não se transformou em um Projeto de Saber.
Estamos com dois turnos: pela manhã, 08 crianças de 3 a 5 anos. Este turno está vivendo circunstâncias que vamos avaliar para perceber a melhor direção a tomar (falaremos disto no próximo “diário”); à tarde, 09 pessoas: Theo, Cauê, Keven, Ane Kethleen, Vitor Emanuel, Keu, André, Peterson – moçada de 4 a 17 anos. A Fabiana, mãe de um bebe – a Shaiana – de poucos dias, não tem conseguido, naturalmente, comparecer. Além deles, devem iniciar, em agosto: Luíza, Daniel e Alan. No dia de flauta, a tripulação aumenta, pois abrimos este espaço para as crianças da Vila. Aí temos velhos frequentadores do Projeto: Abimael, Cleiton, Nina, Douglas, Vitória, Iago, João, Alan. Novidades: Rosseline e Damares. Da Vila-Escola estão: André, Keu, Cauê, Ane e Emanuel.
Juliana e Leonardo, da Pousada Aquarela, estão com a Vila-Escola! Uma aquisição maravilhosa para todos, pois, além de conhecimentos variados, trouxeram um energia amorosa, cuidadosa e carregada de entusiasmos. Obrigado, amigos! 

Até julho!

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Do Projeto de Gente a Vila Escola...

Diários de Cumuruxatiba
março/abril de 2011
(do Projeto de Gente à Vila-Escola Projeto de Gente)


Resolvemos usar este espaço para fazer uma retrospectiva das circunstâncias que nos conduziram á Vila-Escola Projeto de Gente. Os diários de maio e junho vão contar como foi o nosso 1º semestre. 
Então, vamos lá! 
Depois de 3 anos de atividades – e principalmente durante o transcorrer do 1º semestre de 2010 – ficou claro para os participantes do dia a dia do Projeto de Gente que a dinâmica do trabalho precisava ser aprimorada. 
Sentíamos que, sem uma reformulação, seria preciso muito tempo para trabalhar certas circunstâncias. Entre todas estas circunstâncias, a principal, era – é – a imensa falta de costume das crianças e jovens acreditarem que suas vozes serão, realmente, ouvidas e consideradas, pois, via de regra, os lugares que frequentam não proporcionam tal possibilidade. Esta falta de costume as leva a um tipo de silêncio – às vezes, muitas vezes, barulhento. A dinâmica é, mais ou menos, esta: a princípio não falam porque não sabem como se expressar livremente; a seguir, algumas fazem brincadeiras, meio nervosas, outras riem; e, assim, esquecem o que não souberam comunicar, isto é, esquecem o que sentem, o que pensam. Incômodo barulho, trágico silêncio. 
Este processo é amplo, geral e irrestrito, acontece em relação ao filme que vêm, à música que ouvem, ao sistema em que vivem, à escola em que estudam, à família que as rodeiam. E, ao final, não mais refletem, não mais sentem, apenas reagem a um sistema que, assim, os controlam. 
Reagem, basicamente, de duas maneiras: uns brigam, mesmo sem consciência clara, com o sistema. São rebeldes assustados, desnorteados, que atingem a todos com seus golpes – inclusive e em primeiro lugar, eles mesmos. Atingem também aqueles a quem amam. Outros, pacíficos, aceitam as regras impostas (impostas, pois não fizeram, em nenhum momento, parte do “conselho de adultos” que as organizaram), acatam-nas, e assim escondem-se, assustados, desnorteados, atrás do cumprimento do que lhes é exigido, esperado. Em ambas as situações não há livre expressão. Estão, como dissemos, apenas reativos à imposição, não são, de fato, protagonistas de suas vidas. Deste modo, rebeldes e submissos se encontram dentro da mesma circunstância: esquecidos de si mesmos. 
Pois bem, um dia, no Projeto de Gente, percebemos algo muito importante. Observando a dinâmica do que estava, naquele exato momento, acontecendo, vimos que a moçada estava se comportando como num grande recreio de escola. Quem estiver lendo este texto talvez possa se lembrar da expectativa que percorria a turma instantes antes do sinal tocar anunciando o recreio. A maioria de nós já estávamos ligados nas brincadeiras, na correria, no lanche; enfim, na liberdade, no contra-ponto da sala de aula. 
Neste dia, nos demos conta de que levaríamos um tempo enorme para que as nossas crianças percebessem que, ali, não era um recreio; que, ali, existia um lugar que não era para eles; que, ali, existe um lugar que é deles; que, ali, não precisavam extravasar suas energias reprimidas por regras e mais regras impostas; que, ali, podiam simplesmente viver o ritmo de cada um e de todos; que, ali, eles podem ser simplesmente ativos, manifestar o que querem, o que pensam, o que sentem e, juntos, encontrar a melhor maneira de vivenciar o que querem, o que sentem, o que pensam, o que desejam. 
Amigos, a atitude reativa é como uma defesa, uma armadura que colocamos para nos “proteger” de algo que sentimos como ameaça. Esta armadura, pouco a pouco, nos pesa, limita nossos movimentos. Assim, o que nos “protegia” agora nos machuca. Porém, enquanto a ameaça persiste – ou imaginamos persistir –, é difícil tirá-la. Daí o longo tempo de trabalho para se perceber – tão acostumados estamos – que podemos jogá-la fora. Às vezes percebemos seu peso, entretanto, muito rapidamente, novamente assustados, desarmados, sentimos como se “ruim com ela, pior sem ela”. “ Como se”, vale dizer, uma ilusão, não uma verdade, pois, à medida que crescemos, que vingamos, podemos nos proteger de maneiras menos tensas, menos pesadas, mais equilibradas, mais saudáveis. É deste modo que abrimos mão da verdade em prol da ilusão. 
Naquele momento, reafirmamos a disposição para viver este tempo, longo que fosse. Contudo, desejamos trabalhar na possibilidade de diminuí-lo. Percebemos também que muitos adultos teriam dificuldade em aceitar este tempo, pois, adultos, estamos, por demais, envolvidos pelas leis que recebemos de nossos pais, que a receberam de seus pais, que a receberam de seus pais... Leis que, muitas vezes, sentimos como naturais mas que, em realidade, são contra a natureza. 
Mas, vamos voltar ao recreio. Ao fazer a analogia com o recreio da escola lembramo-nos do curso de formação em Escolas Democráticas que havia feito em São Paulo durante o ano de 2005 por um dos educadores do Projeto. Foi como se, repentinamente, tomássemos consciência do porque este curso entrara em nosso rumo. 
Percebemos como, para muitos dos meninos e meninas que frequentavam o Projeto, uma escola democrática seria imensamente importante. Por exemplo, meninos e meninas que estavam em séries que não mais correspondiam às suas idades sendo, assim, cotidianamente, humilhados, desqualificados. Meninos e meninas cujo brilho nos olhos, cujas lindas habilidades e pujantes inteligências apagavam-se, gradativa e rapidamente, sufocados pela estrutura do sistema tradicional. 
Parecia, de fato, chegada a hora de por em prática as ideias e conceitos aprendidos na formação em Pedagogia Libertária – as Escolas Democráticas. Uma escola democrática, com a cara do Projeto de Gente, poderia, com naturalidade, criar um campo melhor organizado e organizador para o entendimento e para a vivência dos ideais que buscamos apresentar. 
Na verdade, a maioria já sabe, quando viemos para Cumuruxatiba tínhamos a intenção de criar uma escola. Mudamos de ideia ao conhecer as tantas belas pessoas que trabalham nas escolas da vila e perceber que seria muito complicado, até mesmo arrogante, chegar com uma nova escola. Preferimos, portanto, primeiro mostrar o que era o Projeto. 
Começamos, então, a conversar sobre esta possibilidade com os companheiros de jornada. Era julho/agosto de 2010. Assim decidimos por uma visita a São Paulo para conversar, olho no olho, com nossos amigos do movimento de escolas democráticas. Levantamos recursos extras para a viagem, Eliana e Begara nos emprestaram a casa e, fomos – Ana e Alexandre – a Sampa. Setembro de 2010. 
Os resultados desta viagem foram apresentados na casa da Andreia e do Ricardo, durante um dos jantares mensais em prol do Projeto. Naquela ocasião, ficou muito claro que o plano de se criar uma escola era bom e viável. Aliás, vale lembrar, antes de voltar a Cumuruxatiba, Ana e Alexandre passaram pelo Rio para conversar com os companheiros de lá. Também entre eles houve consenso: a escola era um bom caminho. 
A partir deste momento entramos em contato com a Secretária Municipal de Educação para conhecer os trâmites burocráticos. No 1º encontro foram Ana, Ricardo e Alexandre. Problemas no Conselho Municipal de Educação impediram a imediata entrada de nosso ofício na pauta da primeira reunião. Depois, outros problemas de saúde entre integrantes do Conselho impediram a realização das reuniões. Em fevereiro de 2011, Ana e Alexandre voltaram ao Prado. Por coincidência, já no ponto do ônibus, a Alcione – diretora da Escola Algeziro Moura – nos viu e entregou um ofício do Conselho que, não entendemos porque exatamente, havia sido dirigido à Algeziro. O ofício apenas comunicava o recebimento da solicitação de criação da escola.
De todo modo, a ida ao Prado foi mantida. Foi nesta visita que soubemos dos detalhes expostos acima. Repetimos a visita há poucos dias, pois não recebemos outro comunicado. Também fomos até Teixeira para o contato com a DIREC 9, orgão responsável pelo Ensino Fundamental. Lá conhecemos o Bougleux que nos deu as primeiras orientações sobre o procedimento burocrático de formalização da Vila-Escola.
Nestas andanças concluímos que seria interessante começar com o Ensino Infantil (3 a 5 anos) e Fundamental I (1ª à 4ª série). Esta conclusão baseava-se em praticidade funcional e economia financeira: a estrutura do Ensino Infantil já estava organizada após a experiência da turma dos pequeninos de 2010 no Projeto de Gente e não necessitaríamos de nenhum profissional a mais no quadro; para o Fundamental I precisaríamos de apenas um professor. Como a Ana tem todo o interesse, como mãe e profissional, em estar neste lugar aceitou as condições de nosso momento, em colocar-se no cargo oficial de professora do Fund. I. Este interesse evidencia a profunda aliança e comprometimento da Ana com a futura Vila-Escola Projeto de Gente.
Por outro lado, à medida que conversávamos com os meninos e meninas do Projeto de Gente, também ficava claro para a maioria que a criação da escola seria um passo adiante. Inclusive, uma circunstância nos pareceu particularmente interessante: muitas crianças, desejando participar da Vila-Escola, convenceram seus pais e mães, ou melhor, se fizeram ouvir, ao se comprometerem a frequentar a escola a que estão acostumados – a escola da vila – e, ao mesmo tempo, a Vila-Escola. Vieram nos procurar para perguntar se isto seria possível. Não custou nada para, nós da Vila-Escola, percebermos a pertinência deste plano, pois não tínhamos nenhuma dúvida de que não seria fácil para a maioria adulta – pais que sempre frequentaram as escolas da vila – simplesmente aceitar os conceitos libertários e democráticos da escola a ser implantada e sua diferente proposta pedagógica. Pareceu a todos do Projeto que esta era uma bela maneira de se iniciar o processo de construção da Vila-Escola, pois todos estaríamos compartilhando o movimento, respeitando as variadas dúvidas e inseguranças (“vai dar diploma no final?”, “ e se meu filho não quiser nunca estudar?”, “este sistema dá certo mesmo?”). Mais adequado aos ideais da Vila-Escola impossível.
Organizamos seis encontros em novembro de 2010, em dias e horários variados, para divulgar como funcionaria a Vila-Escola. Um dos pais interessados que sua filha frequentasse a Vila-Escola preparou um áudio-visual. Colamos cartazes nos vários e tradicionais pontos da vila (padarias, supermercados, etc).
Avançamos pelo verão e, em fevereiro de 2011, tínhamos a turma da Educação Infantil – 8 pessoinhas – e 9 meninos e meninas para o Fundamental I. Destes 9, 7 estão frequentando a escola da vila pela manhã e a Vila-Escola à tarde. Vale dizer que, para a Vila-Escola a divisão em séries não é fundamental. Nos referimos a Fundamental I por questões estratégicas relacionadas, como já vimos, aos recursos financeiros, pois o Fundamental II exige professores de matérias específicas. Contudo, pela reformulação da LDB, mesmo no Fund. II, pode-se usar projetos – e não cadeiras seriadas – como ferramentas na aquisição do conhecimento curricular tradicional. Esta possibilidade permite que os grupos de estudantes se organizem por interesses e afinidades, sem preocupação sobre qual série cada um está no sistema tradicional.
Iniciamos as atividades da Vila-Escola seguros de que, seguindo firme com nossos princípios, estamos prontos para correr os riscos que, de resto, são inerentes a qualquer empreendimento.
Percebemos claramente que não deveríamos nos paralisar frente aos medos e inseguranças; percebemos que era a hora de dar mais um passo em direção às metas do Projeto de Gente. Percebemos e partilhamos cada etapa deste processo com todos os companheiros.
Assim, resumindo e concluindo: (1) todos os elementos da trajetória de organização da Vila-Escola foram expostos ao longo destes meses; (2) que não houve aumento considerável nas despesas mensais: R$20,00 a mais quanto ao novo aluguel (de fato, uma taxa de manutenção por 10 meses, o que também nos dá R$600,00 de economia nos meses de dezembro e janeiro), R$30,00 de taxa de água (vamos pedir isenção ao grupo que organiza esta situação), e uma quantia referente à conta de luz (aliás, sobre a conta de luz, Cecília escreveu há poucos dias: “voltei de Cumuru pensando em deixar a energia por minha conta mesmo. Já arco com isto naturalmente, está em débito automático na minha conta. Fica como minha contribuição mensal do 'grupo de amigos' (comam os almoços, jantares e lanches por mim! Rsrsrs”); (3) a equipe segue sendo a mesma – Ana, Isabel e Alexandre –; (4) existe, hoje, mais facilidade de termos voluntários que preferem trabalhar de um modo mais organizado com os meninos e meninas; (5) temos maiores possibilidades de patrocínio com uma escola do que com um projeto nos moldes do Projeto de Gente; (6) o processo burocrático de legalização pode ser concluído – e aliás, de praxe, é assim que acontece – com a escola em funcionamento, como nos informou o inspetor Bougleux, da DIREC 9 (“Alexandre, no Brasil ninguém fecha uma escola, precisamos de mais e mais delas”, me disse o Bougleux). Esta foi, inclusive, a vivência pela qual a Ana, dona de escola por 13 anos no Rio de Janeiro, já passou; (7) os meninos e meninas encontraram uma maneira objetiva e prática para vivenciarmos o trabalho de aceitação e implantação de novas ideias e novas práticas; (8) alguns pais e mães se mostraram muito receptivos à Vila-Escola tal como ela se propõe e esta é, já reconhecidamente, uma das condições mais importantes para o sucesso das Escolas Democráticas.
De modo que, somando estes pontos, estamos confiantes na possibilidade de que, juntando forças, habilidades e conhecimentos, possamos ultrapassar as dificuldades que ainda encontraremos durante a jornada.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Diários de Cumuruxatiba Janeiro/Fevereiro de 2011

Diários de Cumuruxatiba
Janeiro e Fevereiro de 2011

Quarto verão do Projeto de Gente em Cumuruxatiba. Mês dedicado ao descanso, aos amigos que vêm de fora e à preparação da Vila-Escola Projeto de Gente.

Do Rio de Janeiro vieram a Sandra e o Luiz Paulo – chegaram, de fato, no final de dezembro. Infelizmente, as atividades já estavam encerradas, mas conheceram algumas crianças e adultos. De todo jeito foi possível conversar sobre o trabalho, suas conquistas e dificuldades, limitações, erros e acertos. Sempre fica a impressão que faz diferença estar no local onde acontecem os eventos que tentamos comunicar em textos ou conversas lá no Rio ou São Paulo, por exemplo. Talvez este seja um exemplo da complexa palavra “energia”, palavra, muitas vezes, usada para simplificar; porém, também usada para explicar algo que não alcançamos inteiramente – algo apenas sentido e/ou intuído. Sentir a “energia” do que acontece é diferente de pensar – ou mesmo ter sentimentos – sobre o que nos é dito em relação ao que acontece.

Também vieram a Cumuruxatiba o Lucas e a Thais. Bom tê-los aqui. Boas conversas debaixo das amendoeiras da praia. Ruim é o gosto de “quero mais” que fica presente por muitos e muitos dias – até hoje, final de fevereiro, o gostinho este está presente.

Camila, Caique e Nina também vieram. Ficou o mesmo gosto, além de lindas fotos que eles fizeram para nós. Aliás, visitem o http://www.sementeirafotografia.com/, lá vocês vão conhecer o trabalho da Camila e do Caique.

Como dissemos, janeiro também foi dedicado à preparação da Vila-Escola. Este tem se revelado um trabalho bastante delicado. Delicado, não apenas por conta da burocracia envolvida; delicado, principalmente, porque a pertinência deste passo é percebida, principalmente, pelos que estão no cotidiano mais cotidiano do Projeto de Gente. Como dissemos, não bastam as conversas sobre o que acontece, não basta saber do movimento do caixa, é preciso sentir o que acontece, sentir a “energia” – olha a palavrinha perigosa! – do dia a dia, sentir a dinâmica do processo que é, há um tempo, coletivo e personalizado.

Contudo, aqui, neste diário, embora afirmando não ser o ideal, vamos tentar mostrar em palavras o que é melhor percebido nas ações, nos acontecimentos do dia a dia.

Foi também com este intuito que escrevemos no relatório apresentado após a viagem feita, em setembro de 2010, a São Paulo para conversar com o pessoal das escolas democráticas: “O Projeto de Gente, em seu formato atual, não poderia ser de presença obrigatória, sob pena de afastar os meninos e meninas que, por conta de variadas e naturais situações, não podem garantir tal assiduidade. Porém, foi, exatamente, a flutuabilidade na frequência cotidiana no Projeto e a percepção de que a estrutura democrática ficava comprometida sem uma participação mais estável que os educadores colocaram em pauta a transformação do Projeto de Gente na Escola Projeto de Gente. Agora, estamos seguros de que este é um passo à frente no desenvolvimento do trabalho em direção às metas do Projeto.

Resumindo, por conta da natural necessidade de presença das meninas e meninos, a escola promove um:

- Melhor campo para a vivência da dinâmica democrática. Com a prática democrática todos são levados a perceber, desde cedo, o valor do comportamento solidário, cooperativo. Nesta circunstância, cada um aprende que é responsável por si e também pelos demais. A lei natural da cooperação e solidariedade prevalece, assim, em relação à lei da competitividade.

- Melhor campo para interação e observação do Processo de Individuação de cada um dos integrantes do Projeto. Um lugar onde poderemos perceber melhor quem cada um é, e respeitá-lo em sua maneira de ser. As pessoas são semelhantes entre si; semelhantes, não iguais. Nem todos têm as mesmas habilidades, interesses ou mesmo sensibilidades absolutamente iguais. Apesar de cada ser humano possuir tudo o que outro possui, em cada um, estes elementos se organizam de maneira única, singular. É preciso que as crianças possam reconhecer sua pessoalidade – e a do outro – para, assim, perceber que nenhum é melhor – e nem precisa ser – do que ninguém. Neste lugar será possível conhecer a liberdade como uma prática onde não se faz, simplesmente, o que se quer, mas, uma prática onde se faz o que se quer junto ao outro, com o outro.

- Oferecer uma alternativa à escola tradicional na qual o estudante encontra um ambiente extremamente disciplinador, com escolhas quase sempre reduzidas a cumprir tarefas que lhe são impostas; onde precisa cumprir metas e performances estabelecidas, frequentemente, sem atenção às particularidades de cada pessoa. Um lugar onde ou cumprem estas tarefas ou serão punidos e reprovados”.

Para melhor esclarecer, mesmo correndo risco de sermos repetitivos, vamos também transcrever um trecho do documento de apresentação da Vila-Escola: “O trabalho, democrático e participativo, acontece fora do horário escolar e a presença não é obrigatória, pois isto afastaria os meninos e meninas que, por conta de variadas e naturais situações, não poderiam garantir qualquer determinada assiduidade. Entre estas naturais situações contam-se: trabalhos de escola, ajuda na venda do peixe pescado pelo pai, necessidade de se fazer o almoço e cuidar da casa e dos irmãos menores, colheita de maracujá, da mandioca, outros trabalhos também sazonais da roça, etc e etc. Assim, se obrigássemos as crianças a uma frequência, qualquer que fosse, certamente afastaríamos um tanto delas que, gostando de participar, estariam impedidas. Além do mais, nos tornaríamos apenas mais um lugar de obrigação.

Entretanto, a flutuabilidade na frequência cotidiana no Projeto nos mostrava, claramente, um comprometimento na vivência da estrutura democrática. Exemplificando: num certo dia da semana – 2ª feira – uma roda era realizada. Produtiva, com cerca de 15 pessoas, discutiram-se 3 assuntos. Um foi debatido e sua solução foi consensual, outro foi ao voto, e o 3º apenas debatido, com sequência programada para a próxima roda. Pois bem, na próxima roda 15 pessoas estavam novamente presentes. Porém, 10 destas eram outras em relação à primeira. Tudo bem, porém o debate ficava muito comprometido: o consenso anterior se desfazia, a votação se alterava, a sequência não era sequência, pois era necessário um novo começo. A roda não rodava!

Durante as tentativas de fazê-la rodar fomos nos dando conta de outras circunstâncias também muito importantes: a imensa falta de costume dos meninos e meninas serem ouvidos – o que se evidenciava na sua postura durante as rodas, tímida ou desinteressada, descrentes de que fossem realmente levados em consideração. Isto também os acostuma a apenas receber, não a participar autonomamente. Também percebemos o hábito – vício – do adulto ditar o que é melhor para os não adultos; de não partilhar a experiência que o faz, em certos momentos, ter de fato uma boa ideia do que pode ser melhor ou pior. Ali estava também presente o vício de não ouvir, de não se atentar para para um certo jovem ou criança, de generalizar; enfim, de, a qualquer custo, manter o poder de decidir”.

Além disto, a turma dos pequeninos, durante o ano de 2010, também mostrou que, no formato de escola, conseguíamos uma mais efetiva aproximação com os pais e mães. Alguns destes pais e mães revelaram suas preocupações em relação à trajetória escolar de seus filhos e filhas – este foi outro fator interessante na definição da escola. Mais um ponto: durante os anos de trabalho reconhecemos o quanto muitos meninos e meninas se sentem desconfortáveis – para dizer o mínimo – numa escola organizada nos moldes tradicionais.

De modo que, para nós do dia a dia do Projeto de Gente, foi ficando mais e mais claro que o Projeto, seus trabalhadores, seus frequentadores, pediam uma nova organização. Esta nova organização era a criação da escola do Projeto de Gente.

Esta proposta suscitou muitas conversas entre as pessoas que seguem nosso trabalho. Na verdade, cada etapa desta jornada foi apresentada e conversada em vários fóruns: entre os meninos e meninas do Projeto, entre os membros do grupo de apoio de Cumuruxatiba – o pessoal do jantar: cerca de 15 pessoas que se reúnem, uma vez por mês, para jantar e, neste momento, é feita uma contribuição de 30 reais, montante usado no aluguel da casa do Projeto e salário de uma funcionária que, todos os dias, limpa as dependências –, 06 palestras foram preparadas e abertas à comunidade (datas e horários diferentes para facilitar). Vale lembrar que nossa ida a São Paulo – uma viagem decisiva para o fortalecimento da escola – foi realizada com o conhecimento e recursos do grupo de amigos do Projeto de Gente.

Contudo, mais tarde, com os planos já traçados e em andamento, surgiram muitas questõesentre os membros deste grupo: e o dinheiro para a burocracia?, e o quadro de professores?, e se a Ana – nossa pedagoga – resolver voltar para o Rio?, e o plano B?.

Como escreveu um amigo, grande parceiro do Projeto, que mora no Rio: “Embora aqui de longe fique difícil entender os detalhes das divergências na condução do Projeto, posso imaginar o conflito entre uma visão mais "certinha", tendendo a acertar todos os detalhes organizacionais antes de partir para a viabilização, e uma abordagem mais arrojada, que deixa a formalização para mais tarde, acreditando que o importante é dar início à prática do Projeto. (…) Provavelmente, como na maioria das vezes, a virtude está no meio. E a grande questão é saber onde é que fica esse tal de meio”. Está certo, nosso amigo!

Vale a pena lembrar também que (1) todos os elementos da trajetória de organização da Vila-Escola foram expostos ao longo destes meses, tanto para o pessoal de Cumuruxatiba quanto do Rio ; (2) que não nos afastamos do que havíamos combinado deste 2010, após a viagem a São Paulo; (3) que não houve aumento considerável nas despesas mensais: R$20,00 a mais quanto ao novo aluguel (de fato, uma taxa de manutenção por 10 meses, o que também nos dá R$600,00 de economia nos meses de dezembro e janeiro), R$30,00 de taxa de água (vamos pedir isenção ao grupo que organiza esta situação), e uma quantia referente à conta de luz (aliás, sobre a conta de luz, Cecília – dona da Pousada onde estamos instalados – escreveu há poucos dias: “voltei de Cumuru pensando em deixar a energia por minha conta mesmo. Já arco com isto naturalmente, está em débito automático na minha conta. Fica como minha contribuição mensal do 'grupo de amigos' (comam os almoços, jantares e lanches por mim! Rsrsrs”); (4) que a equipe segue sendo a mesma – Ana, Isabel e eu –; (5) que existe, hoje, mais facilidade de termos voluntários que preferem trabalhar de um modo mais organizado com os meninos e meninas; (6) que temos maiores possibilidades de patrocínio com uma escola do que com um projeto nos moldes do Projeto de Gente – uma opinião, aliás, que surgiu no encontro pós-sampa, na casa de Andreia e Rico –; (7) que o processo burocrático de legalização pode ser concluído – e aliás, de praxe, é assim que acontece – com a escola em funcionamento, como nos informou o inspetor Bougleux, da DIREC 9 (“No Brasil ninguém fecha uma escola, precisamos de mais e mais delas”, disse o Bougleux) –; (8) que esta foi, inclusive, a vivência pela qual a Ana, dona de escola por 13 anos no Rio de Janeiro, já passou; (9) que os meninos e meninas encontraram uma maneira objetiva e prática para vivenciarmos o trabalho de aceitação e implantação de novas ideias e novas práticas – sobre isto falaremos mais adiante; (10) que alguns pais e mães se mostraram muito receptivos à Vila-Escola tal como ela se propõe e esta é, já reconhecidamente, uma das condições mais importantes para o sucesso das Escolas Democráticas. Aliás, deste movimento de pais e mães surgiu a proposta de colaboração financeira na justa medida da possibilidade de cada família – uma ação cooperativada. No momento que escrevemos já temos mais R$410,00 de contribuições que 4 famílias já organizaram.

Desde que iniciamos a organização do Projeto de Gente, em 2001/02, percebemos que a tripulação desta barca é, de tempos em tempos, alterada. Alguns tripulantes se afastam e dão lugar a outros. Estranhamente sempre temos, pelo menos, o número mínimo de marinheiros para por o barco em movimento.

Este fenômeno pode ser percebido de algumas maneiras. Uma parece ser bastante clara: pessoas alcançam limites pessoais na compreensão dos conceitos e metas do trabalho. Para ilustrar: um grande amigo afastou-se do Projeto, ainda no Rio, e, tempos depois, comentou que os debates semanais sobre o trabalho estavam mobilizando-o intensamente. Disse, nesta ocasião, que ele ficava defronte certas circunstâncias que o assustavam. Circunstâncias que ele concordava precisar transformar, mas frente às quais se sentia acovardar. Disse, inclusive, que agora compreendia porque ele, a princípio, não concordava com certos pontos da discussão. Ele, agora, compreendia sua atitude reativa.

Neste início de 2011, ano de reorganizações, estamos vivendo também transformações no grupo de apoio – nosso tesoureiro, por exemplo, mantêm-se como colaborador, mas afastou-se da função. Diga-se de passagem que ele fez um maravilhoso trabalho de organização do quadro econômico-financeiro do Projeto. Vamos seguir exatamente a metodologia por ele implantada. Muito obrigado, Begara.

Muito movimento! Natural movimento quando se observa o avanço de uma construção. Como já afirmou um velho sábio: “a equação da vida é simples: organização, desorganização para uma nova organização”. Estamos em movimento, organizado-nos e desorganizado-nos.

Na primeira semana de fevereiro, a Cecília – dona da pousada onde vamos trabalhar este ano – trouxe uma placa para ser colocada em frente à VILA-ESCOLA PROJETO DE GENTE. Fizemos uma festa, singela, de inauguração e, no dia 17 de fevereiro de 2011, começamos nossas atividades.

Estes primeiros dias de fevereiro foram usados para firmar os conceitos da Vila-Escola, contato entre os estudantes. Manhã: Eliane, João Artur, Naruna, Naymi, Oton, Sávio e Theo – a turminha da educação infantil. Tarde: André, Afonso, Ayala, Cauê, Douglas, Flávio, Patrick, Peterson, Keven e Thais.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Novembro/dezembro de 2010


Último mês do ano de 2010! 
A pedidos, resolvemos contar uma ou duas histórias, pequenas histórias com a cara do Projeto de Gente.
 Pequenas histórias.
Jogo de bola do lado de fora da casa do Projeto de Gente. Três meninos driblando uns aos outros. Dentro da casa, três meninas, sentadas no chão pois não tínhamos nenhum móvel, desenham com lápis de cor e tinta guache.
 De repente, a bola entra pela pequena janela do quarto em que elas estão e cai, justo, sobre um dos  desenhos. Por sorte não acerta os pequenos potes de guache.
 O educador que estava com as meninas chega à janela, porém, como mágica, os três meninos “desaparecem”. Cada um corre para um canto; ou melhor, dois correm para dois cantos e um para cima de uma mangueira – este não tão rápido quanto os outros.
-        Não fui eu não, “foi” eles!, já foi se defendendo.
-        Ô, cara, ninguém tá querendo saber quem foi, mas chama os outros lá.
-        “Os menino”, faz favor!, ressabiado o carinha chama os amigos. Observação: “Os menino”, “as menina”, é assim que se chama, aqui em Cumuruxatiba, um grupo de meninos e meninas – sem o s final. Também não se fala: Vem cá, por favor!, diz-se apenas: faz favor!, e já se sabe que é para chegar perto.

Os três chegam na janela, já dizendo: Não fui eu!, Não fui eu!, Não fui eu!, Não fui eu!, Não fui eu!, Não fui eu!
 -        Ninguém tá perguntando quem foi, nem é o mais importante, mas eu sei quem foi, disse o educador, bem sério.

Silêncio.

-        Foram os três, claro, ninguém estava jogando sozinho. Mas, é verdade, só um chutou a bola aqui p'ra dentro!

Hesitação. Silêncio. Entreolhares. Finalmente:

-        Fui eu!
-        VOCÊ! PARABÉNS!!!!

Surpresa.

-        Você fez o mais difícil, acertou bem na janela, uma janela pequenininha, nem bateu na trave! Beleza!

Risos meio sem graça, desconcertados. As meninas não gostam daquela fala.

-        Mas, tem um troço chato!, continuou o educador. A bola caiu bem no trabalho de uma menina aqui dentro. Venham cá, olhem!

Os três olham e ficam meio sem graça.

-        E agora, como a gente faz?

Silêncio novamente. Uma menina diz:

-        Dá um castigo nele.
-        Eu? Aqui no Projeto, não é uma pessoa que faz, sozinha, uma coisa destas. Não é o adulto que manda, é todo mundo junto que escolhe o que fazer. Mas, vá lá, qual castigo, você sugere?
-        Sei lá, três dias sem vir ao Projeto. Três não, quatro, uma semana!
-        E se acontecer de novo?
-        Ué, outro castigo.
-        E se acontecer de novo?
-        Ah!, se acontecer três vezes, expulsa!
-        Mas, os caras aí não são seus amigos? (os seis estudam na mesma escola, quatro na mesma sala) Você quer expulsar um amigo? E isto adianta mesmo, ou vai fazer o cara ficar zangado e triste?

Silêncio, de novo.

-        Será que não tem outro jeito de rolar a bola e o desenho sem problemas?
-        Já sei, a gente não joga bola aqui na frente da casa. A gente joga ali do lado. Lá tem uma mangueira na frente da janela.
-        É isso aí!
-        Então, tá combinado! Jogo de bola, pode, mas na lateral da casa. E, pensando bem, lá é até melhor porque o “campinho” é maior e tem mais cara de campinho.

E lá se foram “os menino” e “as menina” desenhar e jogar bola.

Meses depois, bons meses depois.

Acontece qualquer coisa que já não lembramos e um menino, que nem estava na história e frequentava o Projeto há pouco tempo, falou rápido:

-        Foi ele!, Foi ele!, Foi ele!

Um outro garoto diz, também rápido:

-        Ô cara, aqui no Projeto a gente não pergunta quem foi, nem fica acusando. O cara, se quiser, vai dizer. O mais importante é saber como se faz p'ra não acontecer de novo.

Outra história: dia de roda. As rodas ainda não funcionam muito bem, pois os caras não estão acostumados a decidir sua própria trajetória..

Neste tal dia, muita confusão, combinações sobre a dinâmica da roda completamente desrespeitadas. Estamos sentados na sombra, ao ar livre, a tarde é bonita, brisa suave e a roda é um tumulto. Os educadores resolvem não intervir, não reagir, vamos ver como é que isto se regula. Ficamos quietos, obedecendo à uma combinação de roda: enquanto um fala os outros escutam, e,  naquele momento, muitos falavam – nenhum sobre um assunto pertinente – e poucos escutavam. Quando esgotou-se o tempo combinado os que estavam quietos se levantaram e, simplesmente, saíram do local. A roda não rodou, parecia quadrada.

Naquele mesmo dia uma educadora voluntária, não se sentindo mais confortável, desistiu de trabalhar no Projeto. Ela escreveu uma carta que foi lida na roda seguinte. Foi importante! Muitas conversas então aconteceram entre educadores e os meninos e meninas que fizeram a bagunça e também entre os que não gostaram daquele movimento; entre estes e os “bagunceiros”; todos conversaram. Uma semana difícil, confusa, complicada, trabalhosa!

Durante esta mesma semana os seis meninos – eram todos meninos – um a um, vieram conversar sobre o que havia acontecido. Os educadores estavam com a impressão que eles estavam “se lambuzando”: quem nunca come mel, quando come se lambuza; quem nunca teve liberdade para se manifestar, quando tem se hiper manifesta. Entre a moçada a conversa era sobre quem tinha aprontado mais ou menos; alguns davam sugestões sobre o que fazer com os “bagunceiros”  -  conversar, dar um tempo, expulsar, dar um gelo. Falava-se sobre a situação, e também sobre o que fazer com os meninos.

Um momento crítico, limite! As combinações eram claras. Se alguns não queriam segui-las, não concordavam com elas, por que  não usavam o espaço apropriado – a roda – para mudá-las? E então, o que fazer, como agir?

Sabem o que aconteceu? Exatamente estes seis carinhas foram, gradualmente, ao longo daqueles dias, mudando de atitude. Todos, na roda, falaram sobre o assunto, assumindo suas responsabilidades; dois pediram para cuidar do lanche – o que era muito importante, pois o lanche é uma tentação e todo mundo deve cuidar da quantidade de biscoito que cada um deve pegar, quantos copos de suco cada um pode beber! Um momento de “responsa”, cuidar do lanche é uma “responsa”.

Um dia, um jogo de queimada estava acontecendo, um deles – um dos mais agitados – apareceu na porteira, de bicicleta, mas não entrou. Chamou um educador:

-        Faz favor!
-        Ué, você não vai entrar?
-        Agora não, tenho que fazer um trabalho para a escola, mas quero dizer uma coisa.

Silêncio.

-        O que você quer falar?
-        Eu queria dar um muito obrigado ao Projeto.

Silêncio. O educador engolindo seco.

-        Mas, por que “um muito obrigado”?
-        Porque o Projeto não desiste da gente! Depois eu volto!

E sai pedalando, correndo, deixando o educador se recompondo.

Agora, uma história dos pequenininhos. São 7 meninos e 2 meninas. Um dia, eles fazem um navio usando a mesa e os bancos. São piratas e princesas – raptadas, talvez. Não, não são piratas:
-        Eu sou o “pirrata do Carribe”!
-        Eu sou o “pilata do Calibe”!
-        Eu sou o “pi'ata do Cai'be”!

E, claro, as meninas são as “prrincesas”, “plincesas” e “p'incesas”. E viva a diversidade!!!

A celebração de encerramento das atividades do ano de 2010 foi um luxo só! Como já é tradição, quem pode trouxe alguma coisa para compartilhar. Teve gente que, trabalhando não pode comparecer, mas veio só para trazer sanduíches e torta.

A festa começou às 16hs, enfeitada com os trabalhos dos pequeninos: pinturas coletivas, desenhos das experiências vividas com os girinos, com as baleias, com o gelo derretido, com a tartaruga. Os desenhos foram, por sua vez, colocados nas paredes pelos grandes.

Gilberto Gil na caixa. Depois, Curumim Batuque deu show de bola – bem na hora em que o Fluzão também dava show e conquistava o campeonato brasileiro! Vale dizer, muito vale, que o Curumim Batuque é um grupo de percussão mantido, basicamente, pelo Walter a a Dolores e conduzido, agora, pelo João Vítor. A grande maioria de seus integrantes são frequentadores ativos do Projeto.

Depois do Curumim, noite chegando, luzes acesas e as meninas da dança afro-indígena deram uma aula. Muita combinação entre as meninas e os percussionistas e, de repente, o batuque e o movimento dos corpos tomaram conta do espaço.

Um pequeno intervalo e, súbito mas de mansinho, ouviu-se uma pequena percussão – 5 meninos – e  o som suave das 8 flautas. Era Asa Branca do Mestre Gonzagão. Percussão chegando de um lado, flautistas de outro e o encontro foi debaixo da luz da gambiarra. Não, o encontro não foi apenas debaixo da luz, o encontro foi de luz! Uma beleza! Sete canções: Asa Branca – teve bis! –, o Trenzinho do Caipira, Aquarela, Bosque da Solidão, Primavera, Alecrim.

Depois, um pouco de música brega – viva a diversidade de novo! – para todo mundo dançar e fim de festa!

Agora, nas férias, vamos trabalhar para construir as fundações da VILA ESCOLA PROJETO DE GENTE!!!