sábado, 3 de maio de 2008

ABRIL DE 2008

Abril. Mês no qual vivemos intensamente a mais sucinta seqüencia que reflete a vida: organização, desorganização, nova organização,... para que então, já sabemos, aconteça outra desorganização e reorganização e, a seguir... Assim caminha a vida e a humanidade; uma estrutura é organizada e será substituída por outra, se trabalharmos bem, mais complexa e harmoniosa.

No Projeto de Gente: novas crianças, novas combinações; vivência de 2007, aprendizado, reformulações.

Os primeiros dias de atividade foram ocupados com um levantamento do material ainda disponível – o material doado pelos donos da Papelaria Rainha de Fátima, do Rio de Janeiro. Também nestes dias fizemos Rodas para reafirmar e criar combinações. Percebemos grande agitação entre as crianças: muito “foi ele”, “foi ela”, “foi ele-ela que começou”, “não tava fazendo nada e ele-ela me atentou”... Por um lado, parecia que as crianças estavam, através de muita correria, gritaria e brincadeiras, cheias de energia, manifestando grande contentamento; por outro, eventualmente, essa energia expandia-se para além de um certo limite e o que era brincadeira transformava-se em atrito – por exemplo, o alegre “peguei” do pega-pega virava um empurrão, queda, choro e acusação.

Novamente sentimos a importância da presença de educadores em número suficiente para dar campo para que as crianças pudessem viver estes acontecimentos de modo diferente. Criar campo significa aproveitar a oportunidade e dar suporte para que as crianças percebam uma possibilidade que escape da tradicional reclamação/acusação/e espera da punição. Uma situação freqüentemente confusa também para o educador que já a encontra confusamente “organizada”.

Criar campo implica em ajudá-los a esclarecer - vale dizer, a viver - o que realmente aconteceu; assim, ao invés de se descambar para a tal confusão, as crianças terão a chance de agir de uma maneira mais verdadeira e não apenas reagir, mecanicamente, do modo ao qual estão (mal) acostumadas a sentir que se vai “resolver” a questão: acusando, vitimizando-se, irritando-se, enraivecendo-se, brigando, fugindo e etc e etc e etc... (Bom lembrar que adultos, muitas e muitas vezes, atuam da mesmíssima maneira!)

Por falar em organizações, logo na primeira semana, foi sugerido – na própria Roda - que a Roda fosse realizada em um ambiente mais propício á concentração. Até então ela acontecia no maior espaço da casinha (a cozinha), que é também a passagem natural do quintal para os ambientes interiores. O motivo desta proposta foi, exatamente, valorizar a Roda cotidiana da qual emanam as combinações estruturadoras do convívio. Ainda estamos em fase de concretizar a proposta; o que, mais uma vez, revela a imensa paciência que todos devem ter para que as transformações de fato aconteçam.

Entretanto, este ano pode-se perceber, em algumas crianças, uma postura mais firme em relação à importância da Roda, do valor das decisões tomadas de maneira democrática, à necessidade de se aceitar o combinado, a possibilidade de propor, em algum momento, a reformulação de uma regra, etc.

Dois meninos propuseram a formação de duplas de crianças que ajudariam os educadores no dia a dia do Projeto. Estamos conversando sobre a melhor maneira de se fazer isso para que não se corra o risco de se criar a figura de “fiscais”, crianças com “poderes” sobre outras.

Uma circunstância foi especialmente sentida: a sensibilidade das crianças em relação ao que eles chamam de “a vaia”. Essa denominação abrange as manifestações, quase sempre coletivas, que acontecem quando uma criança – mais raramente um adulto – fala algo considerado bobagem, errado, inadequado ou quando, mesmo num tom de brincadeira, sem agressividade, alguns acham que o outro foi escabreado – isto é, chamado a atenção. Nestes momentos costuma-se ouvir, não exatamente uma vaia: uh! uh! uh!, mas um comprido: “iiiiiiiiiiih!”, com as mãos colocadas sobre a boca como que para esconder quem está falando. A tradução do iiiiih é: “olha a bobagem!”, “olha o bobão!”, “vacilão!”; o fato é que todos que levam a vaia, mesmo os aparentemente mais seguros de si, se sentem sem graça, envergonhados, humilhados. Entretanto, parece ser muito difícil conter o impulso de vaiar o outro em algum momento; é como se fosse um vício, uma reação automática.

Uma reação parecida também pode ser percebida quando uma criança faz uma escolha, que, mais tarde quando conversamos, ela percebe que, de verdade, não a acha correta;... mas já fez, já apenas reagiu. De modo geral, parece ser uma prova de força, uma espécie de não querer “bancar o bobo” se agir diferente do esperado.

Outro dia, num pequeno grupo, conversávamos sobre como talvez seja preciso ter mais coragem para fazer o que realmente desejamos fazer do que fazer o que, de fato, não queremos para “não perder a reputação”, como disse um menino.

Este assunto nos levou a trazer, mais uma vez, para a Roda a importante questão sobre o que fazer quando uma combinação é sistemática e claramente descumprida. Uma situação que toca em dois pontos simultaneamente: um que diz respeito às conseqüências mais imediatas daquele ato, o segundo que nos leva a refletir sobre as motivações que levam a criança – ou o adulto – a descumprir o combinado.

A 1ª circunstância, com freqüência, toma uma dimensão aparentemente maior uma vez que a identificamos, imediata e facilmente, com os aspectos práticos e objetivos da vida. Parece que eles nos “tocam” com mais vigor; entretanto, a essência deste movimento, seu motor, está invisível, está no sentimento e na emoção que está por trás da construção do gesto humano; isto é, fazemos o que fazemos, escolhemos os caminhos que escolhemos movidos por uma sensibilidade interior e pessoal, porém, freqüentemente, esquecida e oculta – o 2º ponto.

Como lidar com esses aspectos simultaneamente? Como dar o limite que o corpo, o cotidiano, pede e como, ao mesmo tempo, contemplar o que está oculto para, então, ter a chance de mostrar a essa criança que ela pode, tem o direito, de ser respeitada nessa exata sensibilidade e que, por isso, pode fazer uma escolha diferente da que ela, um dia, aprendeu e lhe parece “garantir” a vida, a “reputação”? Uma atitude que ela tornou sistemática, repetitiva, mecânica, viciada.

Da Roda, das conversas, das trocas, dos afetos partilhados, certamente, vai surgir a resposta a essas perguntas.

A criança – e, que dirá, o adulto – que encontramos no Projeto de Gente já teve, infelizmente, tempo e motivações suficientes para esconder sua mais verdadeira sensibilidade, sua verdadeira identidade, em algum obscuro recanto.

Obviamente que nós, adultos, se desejamos oferecer um campo renovador para as crianças precisamos constantemente renovar o contato com nossa própria sensibilidade, não repetir os velhos padrões que construímos para, exatamente, esconder questões e medos, precisamos desconstruir estruturas do dia a dia com as quais já não concordamos, mas cuja demolição vai nos custar muito trabalho e sensações ameaçadoras.

Também em abril iniciou-se, no Projeto de Gente, o Projeto Xadrez – felizmente ligado à libertação e não à prisão. Paulo Mattos, o Paulinho, nosso novo educador, ofereceu duas tardes de aprendizado do velho jogo do xeque-mate – ou do “shrek-mate”, como disse um pequeno; também tem o espaço para o jogo de damas – neste caso, o Paulinho diz que está aqui para aprender. Boas palavras!

Nas tardes em volta dos tabuleiros muitas observações têm sido feitas: aquele ansioso, outro cauteloso ao extremo, aquele que quer sempre ganhar e, dissimulado, inventa desculpas, não arrisca jogar com outros que lhe perecem melhores, tem também o outro que conheceu o prazer de ensinar e não apenas ganhar. E, pelo menos uma vez, um menino se sentiu envolvido e encantado com a música que colocamos no ambiente do xadrez – o disco de uma saxofonista mineira, a Maria Bragança, - a ponto de pedir para ler o encarte do disco e uma cópia daquela música tão diferente da que ele está acostumado a ouvir.

Nas reuniões entre os educadores – que têm acontecido às quintas-feiras – foi levantada a necessidade de melhor organizar um demonstrativo financeiro do Projeto de Gente. Após a realização da festa de 09 de janeiro que, entre outros propósitos, também visava a obtenção de recursos financeiros percebemos a necessidade e tomamos as seguintes decisões: (1) criar a função de administrador financeiro que será responsável pela organização de uma planilha de custos mensal a ser publicada no blog do Projeto; (2) definir um pró-labore para o coordenador do Projeto.

Nos Diários de jan/fev foi mencionado o valor arrecadado na festa, porém, por falta de agilidade, não foram publicados em tempo hábil. Assim, reafirmamos que, na festa do verão de 2008, (1) foram arrecadados R$ 550,00 com a venda de camisetas e botons, (2) não foi auferido nenhum ganho sobre a venda de comida e bebida na Barraca Portobelo e (3) houve a doação de R$1000,00 pelo Herbert e amigos.

Após a festa um contato foi estabelecido e, a partir daí, sinalizada uma possibilidade de apoio financeiro de maior monta ao Projeto de Gente. Duas reuniões – em 11 e 13 de janeiro - foram realizadas com este possível investidor que solicitou a elaboração de um documento oficial da Associação Projeto de Gente para dar seguimento à esta possibilidade.

No dia 11 de janeiro reunimos, na casinha do Projeto, um grupo de crianças para a avaliação da festa. Compareceu, principalmente, o grupo mais envolvido em sua realização. Neste dia foi apresentada, ainda com a letra das crianças que haviam realizado este trabalho – com supervisão de um educador –, a prestação de contas da venda dos objetos durante a festa.

Muitas possibilidades eram aventadas para o destino desses recursos: pintura da casinha, construção de mesas e de uma placa a ser colocada na frente da casa, reforma da caixa d’água, como também há meses vinha se afirmando a necessidade de ida ao Rio de Janeiro do coordenador do Projeto – motivado tanto por necessidades ligadas ao Projeto de Gente quanto outras, pessoais. Esta última necessidade ganhou força, principalmente por conta do tal contato com o empresário de Brasília.

A ida do coordenador se deu em 16 de janeiro e lá foram realizadas várias e importantes (inclusive com reformulações operacionais) reuniões com a Associação Projeto de Gente, foi elaborado o documento já referido, foi também organizada uma reunião mais ampla com o objetivo de aumentar o número de associados e foram realizados encontros com o grupo de São Paulo ligado à Educação Democrática. Cabe esclarecer que foram duas idas a São Paulo; uma para encontros com Helena Singer, das Escolas Democráticas e com Luiz Claudio Barreto, diretor da Escola Lumiar (referidas nos Diários de jan/fev); outra viagem a São Paulo, de caráter pessoal, não foi custeada por recursos da Associação ou oriundos da festa do verão e, mesmo nessa segunda viagem, existiram reuniões de trabalho com educadores democráticos.

Infelizmente, por problemas de saúde o coordenador precisou ficar cerca de 15 dias a mais do que o pretendido; o retorno a Cumuruxatiba se deu em 15 de março.

Muita coisa se falou e se ouviu nos últimos dias e a equipe do Projeto de Gente agradece, profundamente, aqueles que, apontando falhas e sugerindo alternativas, contribuem para o desenvolvimento do trabalho e também deseja deixar claro que tem consciência da precariedade de suas condições e está trabalhando diariamente no sentido de, passo a passo, ultrapassar tais circunstâncias. Enquanto isso, usa essa mesma precariedade para gerar nas crianças a possibilidade de perceberem a força e a necessidade da união das diferentes habilidades – vale dizer, individuações – para que a vida se organize de modo sempre mais criativo e harmônico.

Um grande abraço e até maio...

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