quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Janeiro/Fevereiro de 2010

Diários de Cumuruxatiba – Janeiro/Fevereiro 2010

Verão absurdamente quente. Se há gente falando que não existe o tal aquecimento global – e bem pode ser verdade visto que, aparentemente, a maioria das pesquisas ditas científicas estão comprometidas por interesses outros –, pelo menos em Cumuruxatiba, o aumento da temperatura média neste verão em relação aos últimos anos foi sensível. Bom para o turistas e a moçada de férias que viveram dias e dias de sol num céu sem nuvens, sombra só a das amendoeiras. Bom para os que vivem – quase todos da vila – do comércio com os turistas. Não tão bom para os lavradores que rezavam para que um pouquinho de água caísse daquele céu sem nuvens, nem que fosse à noite quando os turistas não estão na praia ou no mar.

Fernando Pessoa escreveu:

“... Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
- Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E quando haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade...”

Ainda temos muito o que aprender!

O Projeto de Gente viveu um longo recesso, pois as escolas da vila, este ano, apenas reiniciaram suas atividades em março. Nós, como sempre fazemos, seguimos este calendário.

Tempo de reflexões e re-estruturações. Nosso amigo Herbert, que já havia mencionado um oferecimento, reiterou o desejo de obter recursos junto a seu grupo para viabilizar a presença do Mestre Dema – músico mineiro, professor de flauta e violão – no Projeto de Gente. Dito e feito! Em janeiro, Herbert nos procurou com as combinações básicas já realizadas junto a seus amigos e também com o Dema. Vamos entrar março com a Oficina de Flauta do Mestre Dema!

Outra grande novidade vai ser a 1ª turma de pequeninos no Projeto. Ana Lúcia – pedagoga carioca que conheceu o trabalho em 2009 – realizou um corajoso movimento: mudou-se de armas e bagagens (mais bagagens do que armas, visto que é uma pacifista) para Cumuruxatiba. Vai trabalhar no Projeto pela manhã cuidando de 8 pequenos com 3 a 5 anos. Ana traz na tal bagagem um currículo muito importante: professora, dona de escola por 10 anos. Também vai estar com as crianças da Escola Tiradentes no período da tarde.

Negreiro e Pé de Serra poderão voltar ás atividades relacionadas à capoeira. No ano passado, compromissos outros impediram nossos amigos de participar. Estão de volta!

A Bel Nogueira – jovem estudante interessada em experiências de educação libertária, estudiosa do teatro de Augusto Boal – já marcou dia de chegada.

Dolores, nossa conhecida chef de cozinha, vai dar uma tarde por mês de trabalho. Neste dia vamos fazer uma Oficina de Alquimia Culinária e, aproveitando, uma festa com o que se fez. Nesta festa vamos convidar os pais e mães da moçada do Projeto de Gente.

A Cristina Leme, mestra da Informática em 2009, está viajando e ainda não confirmamos os dias, em 2010, da sua oficina. No quadro mantivemos os dias do ano passado.


2ª feira
3ª feira
4ª feira
5ª feira
6ª feira
MANHÃ

(8:30 às 11:30h)
Pequeninos da Ana
Pequeninos da Ana (atividades na praia)
Pequeninos da Ana

Oficina de Teatro da Bel e do Alexandre

Oficina de Informática da Cristina Leme
Pequeninos da Ana


Pequeninos da Ana

Oficina de Capoeira do Shal
TARDE

(13:30 às 17:00h)


Oficina de Arte da
Eliana
Oficina de Capoeira do Pé de Serra
Oficina de Música do Mestre Dema

Oficina de Teatro da Bel e do Alexandre

Oficina de Informática da Cristina Leme

O intrépido exército de Brancaleone vai tomando sua forma em 2010! Tomando forma à medida que reflete e sente seus movimentos.

De fato, o verão foi um momento de muita reflexão, conversas, troca de ideias entre os componentes do Projeto – crianças incluídas, embora ainda estejam muito desacostumadas a participar deste tipo de organização –, entre estes e outras pessoas interessadas no trabalho.

Algumas percepções foram confirmadas: o formato atual do Projeto de Gente favorece, ou melhor, atrai, principalmente, a moçada até 12/13 anos. Os mais velhos, modo geral, buscam atividades outras (mais esporte, teatro, dança); as oficinas de arte passam a ser menos procuradas (“só desenhar e pintar fica sem graça”, dizem... É justo!). É bom dizer que ficam sem graça exceto, claro, pelos realmente interessados. Interessados, porém, enfrentando os muito comuns conflitos entre o que desejam de verdade e o que a turma “pede”, ou melhor, exige como comportamento padrão. Para eles fica a sensação de que se não se comportarem como a maioria – ou como os dominantes – não serão aceitos na turma. Naturalmente existem aqueles que identificaram no trabalho do Projeto a marca da liberdade, da autonomia, a chance de terem conversas francas sobre qualquer tema e nos procuram para exercer estas possibilidades. Muito bom. Entretanto, como no Projeto não existe frequência obrigatória, também estes se sentem pressionados e sua presença passa a ser um tanto irregular, pois flutua ao sabor de suas preocupações, conflitos e outras questões já conhecidas (trabalho doméstico, na roça, etc). Assim, ficamos mais distantes da interação mais constante que permitiria um conhecimento mais amplo sobre seus sentimentos e sensibilidades.

Temos conversado sobre criar oficinas que estejam mais ligados aos interesses deste grupo – a informática, o teatro, por exemplo. Da informática poderia surgir a possibilidade de uma publicação mensal. O pessoal da capoeira – Shal e Pé de Serra – se interessaram em participar deste movimento. Também vamos pensando sobre como explorar, mais e melhor, a necessidade de se ter um espaço que seja um fórum livre para debates, conversas informais, aprofundamento nos temas de interesse e, frequentemente, fonte de conflitos. Como criar, com naturalidade, estes espaços se não é a prática comum destes meninos e meninas? É preciso esperar, pacientemente, as oportunidades, os momentos que se abrirão para que as peças se encaixem sem forçação, sem amassar as pontinhas e, consequentemente, estragarem. Amassar as pontinha – embora com a melhor das intenções, vamos lembrar sempre – significa repetir os velhos formatos que obrigam, desrespeitam e invadem.

Outro ponto: o grau de defesa de muitas crianças. Sobre isto falamos – começamos – no diário de dezembro. Vale tocar novamente, e quantas vezes for necessário, neste ponto. Pois bem, durante o ano de 2009, fomos defrontados e, por vezes, confrontados fortemente, com a organizadíssima couraça de muitos meninos e meninas. Exemplificando: (1) o menino que a cada dia se mostra mais e mais “marrento”. Pois bem, a cada dia, frente às demandas, exigências do grupo social e, principalmente, defrontado com sua própria sensibilidade, ele vai adotando atitudes-padrão: uma postura mais agressiva, risadinhas provocativas, a ginga padrão, as roupas – uniformes – de praxe e de marca, o uso estereotipado do celular com música. (2) A menina que, desconhecendo suas demandas mais profundas, sua sensibilidade mais verdadeira, seus medos e inseguranças, vai ampliando uma espécie de “zona de segurança”. Zona esta que apenas a esconde, falsamente protegida. Ela se recolhe, se isola, colocando em um mesmo saco de gatos todos os adultos – incluindo aquelas pessoas com as quais ela podia contar, conversar e abrir seu coração. Agora, 14 anos, grávida, temos um outro cenário. (3) O menino que, aos poucos, ia falando sobre suas questões familiares e que, abruptamente, se afasta. Dois, três dias se passam e ficamos sabendo que seu pai – fonte de amor e ódio (Lugar comum? Comum, mas real, realíssimo!) - estava no hospital, internado com graves traumatismos por conta de uma briga no bar. Procuramos o menino e encontramos um carinha reativo, raivoso, descrente de qualquer opção senão a violência (Naturalmente que tudo isto apenas implica no que já temos: muito trabalho)

Um dia, contou um dos educadores, ele – este educador – chegou em casa, após o dia de trabalho, e emocionado, angustiado, pensou na estranha possibilidade de trabalhar apenas com crianças órfãs, afastadas, de algum modo, desta sociedade tão pouco fértil para o desenvolvimento de uma criança, tão pouco colaborativa no sentido de que ela – a criança – possa ter paz minimamente suficiente para se descobrir e prosperar. Ao sentir assim ele estava demonstrando a imensa importância do campo onde as crianças devem – deveriam – se organizar. Um campo que pode oferecer adubo ou veneno para este desenvolvimento. O adubo é a compreensão do processo de individuação de cada um, o afeto construtivo, colaborador. O veneno é justo o avesso, o desconhecimento, a desqualificação, a surdez, a cegueira em relação a este processo, isto é, o afeto destrutivo, confrontador, não acolhedor.

Até março!

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