segunda-feira, 4 de julho de 2011

Diários de Cumuruxatiba Janeiro/Fevereiro de 2011

Diários de Cumuruxatiba
Janeiro e Fevereiro de 2011

Quarto verão do Projeto de Gente em Cumuruxatiba. Mês dedicado ao descanso, aos amigos que vêm de fora e à preparação da Vila-Escola Projeto de Gente.

Do Rio de Janeiro vieram a Sandra e o Luiz Paulo – chegaram, de fato, no final de dezembro. Infelizmente, as atividades já estavam encerradas, mas conheceram algumas crianças e adultos. De todo jeito foi possível conversar sobre o trabalho, suas conquistas e dificuldades, limitações, erros e acertos. Sempre fica a impressão que faz diferença estar no local onde acontecem os eventos que tentamos comunicar em textos ou conversas lá no Rio ou São Paulo, por exemplo. Talvez este seja um exemplo da complexa palavra “energia”, palavra, muitas vezes, usada para simplificar; porém, também usada para explicar algo que não alcançamos inteiramente – algo apenas sentido e/ou intuído. Sentir a “energia” do que acontece é diferente de pensar – ou mesmo ter sentimentos – sobre o que nos é dito em relação ao que acontece.

Também vieram a Cumuruxatiba o Lucas e a Thais. Bom tê-los aqui. Boas conversas debaixo das amendoeiras da praia. Ruim é o gosto de “quero mais” que fica presente por muitos e muitos dias – até hoje, final de fevereiro, o gostinho este está presente.

Camila, Caique e Nina também vieram. Ficou o mesmo gosto, além de lindas fotos que eles fizeram para nós. Aliás, visitem o http://www.sementeirafotografia.com/, lá vocês vão conhecer o trabalho da Camila e do Caique.

Como dissemos, janeiro também foi dedicado à preparação da Vila-Escola. Este tem se revelado um trabalho bastante delicado. Delicado, não apenas por conta da burocracia envolvida; delicado, principalmente, porque a pertinência deste passo é percebida, principalmente, pelos que estão no cotidiano mais cotidiano do Projeto de Gente. Como dissemos, não bastam as conversas sobre o que acontece, não basta saber do movimento do caixa, é preciso sentir o que acontece, sentir a “energia” – olha a palavrinha perigosa! – do dia a dia, sentir a dinâmica do processo que é, há um tempo, coletivo e personalizado.

Contudo, aqui, neste diário, embora afirmando não ser o ideal, vamos tentar mostrar em palavras o que é melhor percebido nas ações, nos acontecimentos do dia a dia.

Foi também com este intuito que escrevemos no relatório apresentado após a viagem feita, em setembro de 2010, a São Paulo para conversar com o pessoal das escolas democráticas: “O Projeto de Gente, em seu formato atual, não poderia ser de presença obrigatória, sob pena de afastar os meninos e meninas que, por conta de variadas e naturais situações, não podem garantir tal assiduidade. Porém, foi, exatamente, a flutuabilidade na frequência cotidiana no Projeto e a percepção de que a estrutura democrática ficava comprometida sem uma participação mais estável que os educadores colocaram em pauta a transformação do Projeto de Gente na Escola Projeto de Gente. Agora, estamos seguros de que este é um passo à frente no desenvolvimento do trabalho em direção às metas do Projeto.

Resumindo, por conta da natural necessidade de presença das meninas e meninos, a escola promove um:

- Melhor campo para a vivência da dinâmica democrática. Com a prática democrática todos são levados a perceber, desde cedo, o valor do comportamento solidário, cooperativo. Nesta circunstância, cada um aprende que é responsável por si e também pelos demais. A lei natural da cooperação e solidariedade prevalece, assim, em relação à lei da competitividade.

- Melhor campo para interação e observação do Processo de Individuação de cada um dos integrantes do Projeto. Um lugar onde poderemos perceber melhor quem cada um é, e respeitá-lo em sua maneira de ser. As pessoas são semelhantes entre si; semelhantes, não iguais. Nem todos têm as mesmas habilidades, interesses ou mesmo sensibilidades absolutamente iguais. Apesar de cada ser humano possuir tudo o que outro possui, em cada um, estes elementos se organizam de maneira única, singular. É preciso que as crianças possam reconhecer sua pessoalidade – e a do outro – para, assim, perceber que nenhum é melhor – e nem precisa ser – do que ninguém. Neste lugar será possível conhecer a liberdade como uma prática onde não se faz, simplesmente, o que se quer, mas, uma prática onde se faz o que se quer junto ao outro, com o outro.

- Oferecer uma alternativa à escola tradicional na qual o estudante encontra um ambiente extremamente disciplinador, com escolhas quase sempre reduzidas a cumprir tarefas que lhe são impostas; onde precisa cumprir metas e performances estabelecidas, frequentemente, sem atenção às particularidades de cada pessoa. Um lugar onde ou cumprem estas tarefas ou serão punidos e reprovados”.

Para melhor esclarecer, mesmo correndo risco de sermos repetitivos, vamos também transcrever um trecho do documento de apresentação da Vila-Escola: “O trabalho, democrático e participativo, acontece fora do horário escolar e a presença não é obrigatória, pois isto afastaria os meninos e meninas que, por conta de variadas e naturais situações, não poderiam garantir qualquer determinada assiduidade. Entre estas naturais situações contam-se: trabalhos de escola, ajuda na venda do peixe pescado pelo pai, necessidade de se fazer o almoço e cuidar da casa e dos irmãos menores, colheita de maracujá, da mandioca, outros trabalhos também sazonais da roça, etc e etc. Assim, se obrigássemos as crianças a uma frequência, qualquer que fosse, certamente afastaríamos um tanto delas que, gostando de participar, estariam impedidas. Além do mais, nos tornaríamos apenas mais um lugar de obrigação.

Entretanto, a flutuabilidade na frequência cotidiana no Projeto nos mostrava, claramente, um comprometimento na vivência da estrutura democrática. Exemplificando: num certo dia da semana – 2ª feira – uma roda era realizada. Produtiva, com cerca de 15 pessoas, discutiram-se 3 assuntos. Um foi debatido e sua solução foi consensual, outro foi ao voto, e o 3º apenas debatido, com sequência programada para a próxima roda. Pois bem, na próxima roda 15 pessoas estavam novamente presentes. Porém, 10 destas eram outras em relação à primeira. Tudo bem, porém o debate ficava muito comprometido: o consenso anterior se desfazia, a votação se alterava, a sequência não era sequência, pois era necessário um novo começo. A roda não rodava!

Durante as tentativas de fazê-la rodar fomos nos dando conta de outras circunstâncias também muito importantes: a imensa falta de costume dos meninos e meninas serem ouvidos – o que se evidenciava na sua postura durante as rodas, tímida ou desinteressada, descrentes de que fossem realmente levados em consideração. Isto também os acostuma a apenas receber, não a participar autonomamente. Também percebemos o hábito – vício – do adulto ditar o que é melhor para os não adultos; de não partilhar a experiência que o faz, em certos momentos, ter de fato uma boa ideia do que pode ser melhor ou pior. Ali estava também presente o vício de não ouvir, de não se atentar para para um certo jovem ou criança, de generalizar; enfim, de, a qualquer custo, manter o poder de decidir”.

Além disto, a turma dos pequeninos, durante o ano de 2010, também mostrou que, no formato de escola, conseguíamos uma mais efetiva aproximação com os pais e mães. Alguns destes pais e mães revelaram suas preocupações em relação à trajetória escolar de seus filhos e filhas – este foi outro fator interessante na definição da escola. Mais um ponto: durante os anos de trabalho reconhecemos o quanto muitos meninos e meninas se sentem desconfortáveis – para dizer o mínimo – numa escola organizada nos moldes tradicionais.

De modo que, para nós do dia a dia do Projeto de Gente, foi ficando mais e mais claro que o Projeto, seus trabalhadores, seus frequentadores, pediam uma nova organização. Esta nova organização era a criação da escola do Projeto de Gente.

Esta proposta suscitou muitas conversas entre as pessoas que seguem nosso trabalho. Na verdade, cada etapa desta jornada foi apresentada e conversada em vários fóruns: entre os meninos e meninas do Projeto, entre os membros do grupo de apoio de Cumuruxatiba – o pessoal do jantar: cerca de 15 pessoas que se reúnem, uma vez por mês, para jantar e, neste momento, é feita uma contribuição de 30 reais, montante usado no aluguel da casa do Projeto e salário de uma funcionária que, todos os dias, limpa as dependências –, 06 palestras foram preparadas e abertas à comunidade (datas e horários diferentes para facilitar). Vale lembrar que nossa ida a São Paulo – uma viagem decisiva para o fortalecimento da escola – foi realizada com o conhecimento e recursos do grupo de amigos do Projeto de Gente.

Contudo, mais tarde, com os planos já traçados e em andamento, surgiram muitas questõesentre os membros deste grupo: e o dinheiro para a burocracia?, e o quadro de professores?, e se a Ana – nossa pedagoga – resolver voltar para o Rio?, e o plano B?.

Como escreveu um amigo, grande parceiro do Projeto, que mora no Rio: “Embora aqui de longe fique difícil entender os detalhes das divergências na condução do Projeto, posso imaginar o conflito entre uma visão mais "certinha", tendendo a acertar todos os detalhes organizacionais antes de partir para a viabilização, e uma abordagem mais arrojada, que deixa a formalização para mais tarde, acreditando que o importante é dar início à prática do Projeto. (…) Provavelmente, como na maioria das vezes, a virtude está no meio. E a grande questão é saber onde é que fica esse tal de meio”. Está certo, nosso amigo!

Vale a pena lembrar também que (1) todos os elementos da trajetória de organização da Vila-Escola foram expostos ao longo destes meses, tanto para o pessoal de Cumuruxatiba quanto do Rio ; (2) que não nos afastamos do que havíamos combinado deste 2010, após a viagem a São Paulo; (3) que não houve aumento considerável nas despesas mensais: R$20,00 a mais quanto ao novo aluguel (de fato, uma taxa de manutenção por 10 meses, o que também nos dá R$600,00 de economia nos meses de dezembro e janeiro), R$30,00 de taxa de água (vamos pedir isenção ao grupo que organiza esta situação), e uma quantia referente à conta de luz (aliás, sobre a conta de luz, Cecília – dona da Pousada onde estamos instalados – escreveu há poucos dias: “voltei de Cumuru pensando em deixar a energia por minha conta mesmo. Já arco com isto naturalmente, está em débito automático na minha conta. Fica como minha contribuição mensal do 'grupo de amigos' (comam os almoços, jantares e lanches por mim! Rsrsrs”); (4) que a equipe segue sendo a mesma – Ana, Isabel e eu –; (5) que existe, hoje, mais facilidade de termos voluntários que preferem trabalhar de um modo mais organizado com os meninos e meninas; (6) que temos maiores possibilidades de patrocínio com uma escola do que com um projeto nos moldes do Projeto de Gente – uma opinião, aliás, que surgiu no encontro pós-sampa, na casa de Andreia e Rico –; (7) que o processo burocrático de legalização pode ser concluído – e aliás, de praxe, é assim que acontece – com a escola em funcionamento, como nos informou o inspetor Bougleux, da DIREC 9 (“No Brasil ninguém fecha uma escola, precisamos de mais e mais delas”, disse o Bougleux) –; (8) que esta foi, inclusive, a vivência pela qual a Ana, dona de escola por 13 anos no Rio de Janeiro, já passou; (9) que os meninos e meninas encontraram uma maneira objetiva e prática para vivenciarmos o trabalho de aceitação e implantação de novas ideias e novas práticas – sobre isto falaremos mais adiante; (10) que alguns pais e mães se mostraram muito receptivos à Vila-Escola tal como ela se propõe e esta é, já reconhecidamente, uma das condições mais importantes para o sucesso das Escolas Democráticas. Aliás, deste movimento de pais e mães surgiu a proposta de colaboração financeira na justa medida da possibilidade de cada família – uma ação cooperativada. No momento que escrevemos já temos mais R$410,00 de contribuições que 4 famílias já organizaram.

Desde que iniciamos a organização do Projeto de Gente, em 2001/02, percebemos que a tripulação desta barca é, de tempos em tempos, alterada. Alguns tripulantes se afastam e dão lugar a outros. Estranhamente sempre temos, pelo menos, o número mínimo de marinheiros para por o barco em movimento.

Este fenômeno pode ser percebido de algumas maneiras. Uma parece ser bastante clara: pessoas alcançam limites pessoais na compreensão dos conceitos e metas do trabalho. Para ilustrar: um grande amigo afastou-se do Projeto, ainda no Rio, e, tempos depois, comentou que os debates semanais sobre o trabalho estavam mobilizando-o intensamente. Disse, nesta ocasião, que ele ficava defronte certas circunstâncias que o assustavam. Circunstâncias que ele concordava precisar transformar, mas frente às quais se sentia acovardar. Disse, inclusive, que agora compreendia porque ele, a princípio, não concordava com certos pontos da discussão. Ele, agora, compreendia sua atitude reativa.

Neste início de 2011, ano de reorganizações, estamos vivendo também transformações no grupo de apoio – nosso tesoureiro, por exemplo, mantêm-se como colaborador, mas afastou-se da função. Diga-se de passagem que ele fez um maravilhoso trabalho de organização do quadro econômico-financeiro do Projeto. Vamos seguir exatamente a metodologia por ele implantada. Muito obrigado, Begara.

Muito movimento! Natural movimento quando se observa o avanço de uma construção. Como já afirmou um velho sábio: “a equação da vida é simples: organização, desorganização para uma nova organização”. Estamos em movimento, organizado-nos e desorganizado-nos.

Na primeira semana de fevereiro, a Cecília – dona da pousada onde vamos trabalhar este ano – trouxe uma placa para ser colocada em frente à VILA-ESCOLA PROJETO DE GENTE. Fizemos uma festa, singela, de inauguração e, no dia 17 de fevereiro de 2011, começamos nossas atividades.

Estes primeiros dias de fevereiro foram usados para firmar os conceitos da Vila-Escola, contato entre os estudantes. Manhã: Eliane, João Artur, Naruna, Naymi, Oton, Sávio e Theo – a turminha da educação infantil. Tarde: André, Afonso, Ayala, Cauê, Douglas, Flávio, Patrick, Peterson, Keven e Thais.

Nenhum comentário: